Questões ingratas

picture (59)Alegrias da vida, das minhas, uma delas era a de consertar o mundo. Divertia-me e sentia-me útil à humanidade. Até recentemente, amigos e eu consertávamo-lo duas, três noites por semana. Agora, só de quando em quando. Diminui-se a quantidade. Mas, como quase tudo na vida, melhora-se a qualidade. Chegamos à conclusão de nada haver para consertar. Não estragar já é o suficiente.

Um dos meus companheiros de reconstrução era teólogo renomado, amigo querido. Ele crê em soluções cristãs. Eu sugeria as pagãs. Os deuses são mais humanos, fica mais fácil negociar. No último encontro, já há bom tempo, invoquei o paganismo com seus tesouros, deuses e oragos em abundância, para tudo e para todos: amor, dor, chuva, morte, guerra, paz. E o teólogo, limpando, nos lábios, a espuma do chope: “E os santos católicos, para que servem? Temos diversos deles para cada dia do ano.” É verdade.

Meu amigo é virtuoso; eu, um pecador. Peco dia e noite, em pensamentos, em palavras e em obras. E ninguém seja mentiroso de dizer desgostar de pelo menos dois pecados capitais, a gula e a luxúria. Meu amigo, porém, um estraga prazeres, sempre acaba por levantar a questão inoportuna e desagradável: a fidelidade. Não me agrado desse assunto. Defendo a idéia de se trocar a palavra fidelidade por honestidade, lealdade, dever. É mais humano, dá menos confusão.

Ora, ser fiel a tanta coisa e a tanta gente o tempo todo, isso enlouquece qualquer um. O homem decente é leal e avisa: “não dá mais.” No entanto, é como se houvesse um consenso de fingimentos: uns fingem que vão cumprir, outros fingem que acreditam. De minha parte, não prometo mais nada. Enjoei. E não me canso de dizer que sou um “ex” em quase tudo na vida. E quem é “ex” deixou de cumprir algo a alguém. Sou ex-comunista, ex-ateu, ex-agnóstico, ex-cristão, ex-casado, ex-descasado, ex-estudante, ex-advogado, ex-professor, ex-jornalista diário, ex-moço. Ora, se eu tivesse sido fiel a tudo o que prometi, estaria, ainda, nos meus vinte anos.

Fidelidade é assunto traumático, tento convencer meu amigo teólogo. Até cão, sempre fiel, anda traindo. Tivemos, em casa, duas parelhas de cães: um casal de pastores, outro de ruskies, os ditos cães siberianos, uma história antiga. De início, conviveram respeitosamente. Então, o mundo caiu. Pois, certa manhã, a criançada descobriu: o cão pastor fugira com a cadela siberiana. E nunca mais apareceram.

A meu amigo teólogo, em defesa de se usar outra palavra, tento mostrar que fidelidade, muitas vezes, pode ser questão de hormônios. Aconteceu com um outro conhecido, tido como “santo homem”, marido fidelíssimo. Até a cor era a de um homem casto. Qual a cor da castidade? Sei lá. A de meu amigo era de um amarelo esverdeado, desbotado.

Passado dos 50 anos – uma dorzinha aqui, outra acolá – decidiu-se ir a médicos. Foi outra tragédia. Apurou-se estar baixíssimo o seu nível de testosterona. E ele passou a fazer reposição hormonal. A cor do homem, de amarelo esverdeado, passou a um rosáceo juvenil e, depois, a vermelho sangüíneo. Em dois meses, o “castíssimo esposo” seduziu a secretária, dormiu com conhecidas e desconhecidas. A virtude dele era, pois, uma simples questão de testosterona.

Não gosto desse assunto. Lealdade, honestidade e dever, eis as palavras. Fidelidade, ao Corinthians e às duras penas. Bom dia.

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