Responso de Santo Antônio

Relógio no banheiroConcluí – já há muito tempo – ser inútil pretender entender a vida. Ela não é para ser entendida, mas, apenas, vivida. A razão humana não comporta a plenitude do conhecimento. O mistério nos embaralha, confunde-nos. Diante dele, nada se explica e nada se entende. Basta, então, apenas aceitá-lo. O cansaço fica menor.

Ao longo da vida, duvidei de quase tudo, especialmente em questões de fé, apesar de tê-la alcançado. Eu precisava entender para crer. Diante da fé, acabei perdendo-a quando mergulhei nos estudos e tentei, racionalmente, entender. Lembro-me de que me diziam: “De teólogos, o inferno está cheio.” E eu não acreditava. Até que desisti e me convenci da conclusão de Shakespeare: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.”

Ora, minha formação vem, também, de filósofos marxistas, entre eles, ou especialmente, Antônio Gramsci. Uma orientação dele me marcara: “Ser cético na razão, mas com esperança no coração.” De alguma maneira, era o que a vida quase inteira tentei fazer: duvidar mas esperançar. Nas questões religiosas, no entanto, mais duvidei do que esperancei. De tanto duvidar e querer entender, minha fé desapareceu. E levei quase 30 anos para recuperá-la. Só fiz, quando deixei de querer entender.

Essas coisas, escrevo-as por causa do “responso de Santo Antônio”. Nunca acreditei nisso, da mesma forma como nunca tive devoção por santos. O responso é a súplica para encontrar coisas perdidas. Nunca dei importância, até mesmo por pensar que, por Santo Antônio ser padroeiro de Piracicaba, o responso fosse alguma superstição local, algo assim, sei lá. Lembro-me de ouvir minha mãe fazer as suas súplicas ao santo quando algo se perdia em nossa casa. E as vizinhas, também.

A vida, porém, ensina. E – num tempo de ceticismo total – conheci o meu primeiro abalo quando vi, na Cidade do México, o manto de Nossa Senhora de Guadalupe, na catedral de lá. A NASA fizera testes e experiências científicas no manto, no qual se estampava a figura do índio, ajoelhado, em súplica. Apenas para resumir: a NASA descobrira – e estava em enormes painéis na igreja – que, na pupila de Nossa Senhora, se podia ver o índio suplicante. Era a palavra da ciência. E aquilo me perturbou e me embaralhou no meu ceticismo radical.

Pois bem. Eis que perdi meu relógio de pulso. Dentro de casa. E ainda sou escravo de relógio, herança amarga de tantas décadas dirigindo jornais, com prazos fixos e determinados, a necessidade vital de cumpri-los. Cheguei a saber do horário sem mesmo consultar relógios. E esse castigo permaneceu comigo. Portanto, ao não encontrar meu relógio, senti-me nu, desprotegido, vulnerável. Foram dez dias de inquietação. Vasculhei a casa inteira, até em lugares a que não costumo ir. E minha mulher ajudando-me. Foram dez dias de obsessão e de aflição. Até que ela, minha mulher, falou de uma tia de fé poderosa que rezava o “responso de Santo Antônio” e, logo, se encontrava o objeto perdido. “Não falha.” – garantiu-me ela.

Ainda que não acreditando, concordei.  E ela telefonou para a tia, numa tranqüilidade que me irritava. Sua certeza era-me absurda. Isso foi no domingo à noite. Na 2ª.feira, nem me lembrava do responso e nem de Santo Antônio. Acordei, porém, com o gosto amargo de minha aflição, de minha doentia necessidade de ter relógio no pulso. Eis que, entrando no lavabo de minha biblioteca – onde fui todos os dias da minha aflita procura – bato os olhos na pia e lá estava ele, meu relógio! Não acreditei, pois eu estivera no lavabo todos os dias, diversas vezes por dia, conforme o xixi exigia. Então, gritei para mim mesmo: “E viva Santo Antônio!”, feliz como criança que acredita em Papai Noel.

Agora, convencido do mistério, vou fazer um responso e gostaria muito de que os piracicabanos de fé me acompanhassem. Como Santo Antônio é padroeiro da cidade, vamos suplicar, no responso, para que ele encontre, para nós, a Piracicaba perdida pela inépcia e gula de nossas lideranças. Bom dia.

1 comentário

  1. Luiz Thomazi em 29/01/2014 às 15:37

    Grande Cecílio, me diverti muito com essa história… Bons anos atrás, meu pai não conseguia encontrar alguma coisa que não me recordo bem o que era (óculos, acho…), então minha avó Lúcia, a sogra dele, fez a oração-simpatia de Santo Antônio, e não deu outra: logo logo apareceu “milagrosamente” o que estava perdido. Só que, depois, ela teve que levar “pães para os pobres” numa igreja que ficava no centro de São Paulo, perto da Faculdade de Direito. Por essas e outras lembranças e reflexões que suscitam é que não dá pra não ler o seu maravilhoso “Bom Dia”!

    Abraços.

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