Ressurreição da alma carioca

Sei, obviamente, que experiência e vivência pessoais não servem a ninguém, a não ser a quem as tem. Ao mesmo tempo, não sei o que seria do mundo se os mais vividos não falassem do quê, de como, onde e quando aprenderam alguma coisa, por mínima seja. Jovens são e sempre serão braços. Idosos, pessoas maduras, estes devem, pelo menos, ter algo para dizer a respeito dos caminhos, das estradas, das jornadas. Ora, se, estando à margem, vejo alguém passar e não lhe disser que, logo à frente, há um precipício, de que me falará ter passado por ele?

Na minha já longa jornada – e insisto em dizer que, em intensidade, vivi mil anos – aprendi um pouco com tudo, de dores e alegrias, de lutos e epifanias, de crenças e decepções. Dizer que nada aprendi com livros seria mentira, pois aprendi muito com quase todos eles. A vida me permitiu metabolizar na alma e na razão a teoria e a prática, um esforço sem fim. E posso dizer, agora que tudo tanto se alongou, que nada me foi tão pródigo, esclarecedor, orientador, desvendador de mistérios e rompedor de obstáculos do que os meus mergulhos na mitologia e o estudo continuado de um livro que me tirou tampões dos ouvidos e dos olhos: “Homo ludens”, de Huizinga. Ler e estudar essa obra, quando cheguei aos meus 40 anos, foi descobrir o caminho das pedras, um início de entender algo que falsos moralismos negavam: a vida é um jogo. Dos mais belos e dos mais cruéis.

Pois é isso: a vida é um jogo. Ora de xadrez, ora de dominó, ora de futebol, jogos que se jogam todos os dias, em cada momento. E o futebol é, pela visão esplendorosa de Huizinga, o que mais explica as intrincadas e também lúdicas relações dessa nossa estranha e admirável raça humana. No futebol, está a síntese de nosso individualismo e de nosso espírito solidário, que se alternam conforme os adversários e os interesses dos próprios jogadores. Se, desde a escola fundamental, começássemos a orientar nossas crianças para o fantástico do jogo humano – que é, na verdade, a busca e a compartilha de formas de poder – seríamos, penso eu, mais honestos. Pois mostraríamos que, sendo tudo jogo, este pode ser leal ou desleal, limpo ou sujo, nobre ou vulgar, sagrado ou apenas de uma medíocre dimensão profana. Somos esse infinito de contrastes e contradições.

Moralistas e acadêmicos aprisionados apenas a especializações reducionistas empinam os narizes e menosprezam os jogos, como se fossem pequenezes humanas. Mas não são. No jogo, está a vida, a sobrevivência, o convívio, a busca da paz e a deflagração da guerra. Até dentro de casa, na família. Entre vizinhos. E, por isso, jogos apaixonam e chegam a enlouquecer. Neles, estamos nós. Cada um de nós.

O futebol é a síntese, no jogo e no esporte, de tudo isso. E, neste final de ano, não foi apenas o Brasil, mas o mundo, que se agitou por causa das disputas finais de futebol, de classificações, de conquistas e de perdas. Atrevo-me a dizer, a partir dessa convicção de que o futebol explica muito, que o Brasil entrou em um novo tempo, em uma nova fase, na recuperação de algo que se pensou estivesse perdido e que, no domingo, se mostrou totalmente vivo, apesar de combalido: a alma carioca. Não há Brasil sem a alma cariosa, o espírito carioca, de picardia, de sabedoria e alegria de viver, de um povo que encontra a unidade a partir de futebol e de carnaval. Por quê não?

A auto-estima recuperada do povo carioca – tão abalada com banditismos, a partir de guerras entre traficantes, violências e corrupção – é o melhor que poderia acontecer ao Brasil nestes nossos novos horizontes de esperanças e de certezas, de expectativas e de convicções. Sem alegria, o Brasil não existe. Sem paixão, não há Brasil. Huizinga permite entendamos, com mais clareza e lucidez, porque o povo brasileiro tanto ama o presidente Lula, tanto confia nele e tanto dele espera. Lula, na realidade, é o “homo ludens” na presidência da República. E a vitória do Flamengo, a espetacular recuperação de Botafogo e Fluminense fazem ressuscitar essa alma carioca que tanta falta nos fazia. Pois ficar apenas com a alma pragmática e sombria do racionalismo paulista é transformar a vida e o mundo num jogo sujo e de cartas marcadas, onde os vencedores já estão definidos antes de os jogos começarem. A paixão dos torcedores de Flamengo e de Corinthians explica o Brasil. Da mesma maneira como o entendimento do jogo, como componente da alma humana, explica o horror e a pequenez da selvageria ocorrida em Curitiba, tida como a cidade mais civilizada do Brasil.

Em minha míope visão, vejo que nada melhor poderia ter acontecido ao Brasil do que, no futebol, times e clubes cariocas terem recuperado o orgulho, a alegria, a confiança e esse inesgotável sentimento de querer superar dificuldades ou de transformar a derrota em vitória, o limão em limonada. Parodiando Obama, “nós podemos.” Bom dia.

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