“Ridendo castigat mores”

RidendoO poder, em nenhuma de suas formas, suporta o humorismo. O humorista é capaz de derrubar impérios, reinados, governos. Para o Poder, a gargalhada é mais destruidora do que a vaia, a xingação, o protesto. O medo de cair no ridículo inquieta mais do que ser ameaçado pela espada. Isso significa, pois, que, para governantes e detentores das muitas formas de poder, um humorista é mais perigoso do que o adversário guerreiro.

Desde o Império Romano, o humor atormenta os poderosos. A frase, que se tornou proverbial, vem da Antiguidade: “Ridendo dicere verum” – rindo, dizer a verdade. E isso é de tal forma corrosivo que, dita com graça e picardia, uma simples frase pode desmontar falsos esquemas racionais e psicológicos de políticos, governantes, dirigentes. A frase latina, atribuída a Horácio, inspirou uma outra, que se tornou ainda mais convincente e eficaz: “Ridendo castigat mores” – rindo, castiga os costumes, que passou a fazer parte do frontispício de grandes teatros, incluindo do Comédie Italienne e Opéra Comique de Paris. É o papel, na verdade, do humanista: castigar os costumes com o riso, com a graça, com o humor, enfrentando o Poder com mais eficiência do que exércitos e tanques de guerra. Insista-se: a gargalhada do povo derruba impérios, conseguindo o que bombas e armas nem sempre alcançam.

Na atual campanha eleitoral, uma decisão do Tribunal Eleitoral praticamente impede a prática humorística, a sátira, o riso, a análise graciosa. Humoristas, comediantes não podem mais trazer, para o palco da análise política, o riso que castiga costumes. E nem, portanto, dizer a verdade rindo. Os protestos são gerais e justificáveis pois é impossível deixar de ver, nessa decisão, o ranço da censura, o medo do poder, o lobby de políticos e de partidos temerosos de, pelo riso, a crueza da verdade deles desmoronar. E, a partir daí, aumenta o coro daqueles que se opõem à censura, tanto os do que o fazem de boa como de má fé. Pois o Brasil está claramente organizado para evitar discussões e reflexões em torno de questões fundamentais como, por exemplo, o próprio conceito de liberdade. E esta, a liberdade, ainda que bem e direito essenciais, não é nem bem nem direito absolutos. A liberdade tem regras. E ela não pode ser entendida como algo apenas pessoal, excluindo a existência do outro. Liberdade implica, automaticamente, responsabilidade que é a capacidade de responder pelo que se faz, tendo o outro e a lei como referência.

O riso, a gargalhada nem sempre significam alegria. Podem ser, também, manifestação de sarcasmo, de ridicularia, de desprezo. Por isso, rimos quando nos deparamos com algum insulto à razão, ao óbvio, ao corriqueiro, ao que chamamos de normal no cotidiano. No entanto, rimos, também, muitas vezes, quando o insulto se faz a pessoas. É tênue demais, por isso mesmo, o limite entre o humor e o desrespeito, questão que deveria instigar outras reflexões que não apenas o da proibição imposta. Ou não é verdade que, em alguns programas de televisão, o humor está se transformando muito mais em agressões e escrachos do que ato refinado da inteligência?

O humor tem uma importante função social, podendo divertir e, também, relaxar tensões individuais ou coletivas. O perigo, porém, está em se tornar instrumento para dar origem à desmoralização de pessoas ou de grupos, marginalizando-os pela troça e ridicularização. Se a censura é detestável e injustificável, o humor desrespeitoso e grosseiro também o é. E a história – tão esquecida e ignorada especialmente pelos poderosos – nos ensina que, quando se ultrapassam limites do bom senso e do direito, as reações são imprevisíveis. Quando a liberdade se confunde com licenciosidade, o endurecimento, como reação, é inevitável.

Na imprensa brasileira, talvez por um período melancólico de despreparo e de mediocridade, os limites da liberdade estão sendo menosprezados. O humor é a mais difícil das artes, além de ser, através da alegria que desperta, uma entre as muitas pequenas virtudes humanas. Tivemos humoristas notáveis, mestres da sátira, como Millôr Fernandes, Aparício Torelly, entre outros. Suas lições, no entanto, não foram aprendidas. A repressão ao humor é imperdoável, mas há que se pensar e refletir: está havendo, nos meios de comunicação, humor verdadeiro ou grosseria gratuita, agressões injustificadas, imoralidades descabidas? O chulo não é humor, mas apenas grosseria. O humorista, antes de fazer rir, ri. E é rindo que castiga os costumes. Bom dia.

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