Rua do Porto e prainha do Nélio

pictureRevisão de vida é viajar por dentro de si mesmo. E encontrar cacos, ruínas, teias de aranha, pétalas secas de flores, saudade, sentimentos bons e ruins escondidos sob a poeira. Há quem, ao fim da vida, não se arrependa de nada, confirme tudo, mantenha-se, não arrede pé do que fez e do que pensou. São os que, convictamente, dizem ser capazes de – houvesse uma segunda vez – fazer tudo da mesma forma como fizeram da primeira. Isso me assusta. Pois eu faria quase tudo diferentemente do que fiz.

Lembrei, quando se completou outro módulo do Projeto Beira Rio, em Nélio Ferraz de Arruda. Ma longa viagem do pensamento, parece-me absurdo imaginar Nélio Ferraz de Arruda na condição de político. E, muito menos, como prefeito de Piracicaba. Nélio foi um poeta que tentou poetar na política. A realidade, porém, surgiu diante do sonho e mostrou: há espaços impenetráveis a qualquer forma de poesia.

Sua administração ficou marcada pela “prainha do Nélio”, a praia que ele fez à frente do Clube de Regatas, uma beleza de lugar que, no entanto, a primeira enchente destruiu. Não houve quem não tivesse criticado o prefeito Nélio, dedos em riste: era um castelo construído sobre a areia. Fernando Pessoa havia advertido e quase ninguém acreditou: “pensar é estar doente dos olhos”. Racionalistas, pensamos, éramos doentes dos olhos, não vimos que Nélio não falava de obras, mas de um sonho e da possibilidade de realizá-lo. E que, mesmo levada pela enchente, era uma profecia.

O óbvio é tão absurdo que apenas olhos de poetas o enxergam. E Nélio enxergou: o que pode ser mais óbvio do que uma praia numa Rua da Praia? Só os poetas enxergam. Os outros riem-se, fazem chacota. Dizíamos ao Nélio: “Essa praia é loucura.” Depois, alguém observou que o Projeto Beira Rio nada mais é do que “a prainha do Nélio” ampliada. É verdade. Temos de admitir: Nélio, prefeito-poeta, enxergou uma Rua do Porto que apenas sonhadores poderiam ter visto antes. Pois sonhador, qual o profeta, é aquele que vê e sente e percebe antes.

Nélio-poeta, Nélio-historiador, Nélio-radialista, Nélio-professor, Nélio-orador, Nélio-sonhador – por que um Nélio-prefeito? Pensei não houvesse resposta, mas há: a poesia espia quando a realidade se torna árdua demais. Quando as lutas são acirradas, quando o mundo desaba, quando os homens se agridem, quando a loucura parece não ter fim – as musas passam e semeiam sonhos. Naqueles anos –quando Piracicaba se engalfinhava em conflitos e hostilidades – elas, as musas, inventaram uma cidade com um poeta na prefeitura. Sobrevoaram Piracicaba, escolheram Nélio. Para uma só missão: fazer uma prainha à frente do Largo dos Pescadores, avisar e demarcar: “A partir deste lugar, o desenvolvimento de Piracicaba virá abençoado por belezas.”

Se houvesse outra vez, eu pensaria menos e não ficaria doente dos olhos. E entenderia que – como Anchieta, escrevendo poemas na areia – Nélio antecipou, na praia, o que ainda hoje parece loucura: o Projeto Beira Rio. É, na verdade, a Prainha do Nélio amplificada.

Dá para ver, entre os anjos, o Nélio sorrindo. E mostrando a língua para quem não acreditou. Bom dia.

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