Sal-gema e telemarketing

TelemarketingEm meu entender, telemarketing é mal tão pernicioso quanto a peste negra, terremotos, tsunamis, aids e o cólera. Se não for tanto quanto, é quase, pois age como vírus mortífero, sorrateiro, invasivo, amoral. E, pelo visto, não há, até aqui, antídoto que o combata ou o previna. É uma epidemia letal. Acho que pandemia. E o sal-gema, o que tem a ver com isso? Tem.

Pois sei lá que raios de comida a amiga da família queria preparar, uma receita em que se recomendava o uso de sal-gema. Do supermercado, ela telefonou para minha mulher: “O que é sal-gema? Aqui, ninguém sabe do que se trata.” Minha mulher, sem tirar a boca do telefone, me perguntou: “Querido, você sabe o que é sal-gema?” Encafifei, entre surpreso e alegre. Ora, minha mãe, cozinheiras da família, mestras de forno e fogão falavam de sal-gema como se fosse água-benta, tostão furado, meia pataca. Era tão comum quanto bicho-do-pé, mal de sete dias, nó nas tripas, uso de penico.

Respondi: “Sei que existe, mas não para que serve. É do tempo de pó de arroz, de bolsa de água quente, de chaleira, de hamamélis para clarear a pele, de lavanda com limão, de casa com cheiro de feijão.” Minha mulher deixou o telefone, olhou-me com olhar de Dolores, heroína de Hemingway: “Você bebeu ou está esclerosado? O que tem sal-gema com bicho-do-pé, penico, nó nas tripas?” Ela não sabia: ao me perguntar sobre sal-gema, eu entendera — como numa iluminação — a causa da praga do telemarketing. Querem ver?

O telemarketing passou a existir no vazio da perda de valores essenciais, palavras, hábitos e costumes desaparecidos por falta de uso, por descuido. A pouco e pouco, questões emblemáticas foram deixando de existir, como o sal-gema, o hamamélis, a água de rosas, até mesmo o penico. E desapareceram palavras e expressões também vitais: por favor, obrigado, com licença, desculpe-me, às ordens, a seu dispor, disponha, não se acanhe, sirva-se… Eram códigos de respeito, de civilidade. Rompidos, ressurgiu a barbárie. Ora, muitos desconhecem o sal-gema, mas ele existe. Com a civilidade, ocorre o mesmo: mesmo esquecida, também existe.

Em meu entender, telemarketing é invasão de domicílio e de privacidade. Em alguns países civilizados, é preciso permissão expressa do proprietário da linha telefônica para vendedores seja lá do que for — inclusive negociantes de fé, de igrejas, de campanhas beneficentes mal explicadas — invadam o lar de alguém. Telefonia é uma conquista da civilização e, por isso mesmo, não pode servir à barbárie. Pois é barbárie tirar alguém de sua privacidade, invadindo-lhe o domicílio, para propor créditos em bancos, mudanças de planos de seguros, aumento de limite em cartão de crédito ou auxílios para entidades suspeitas.

Eles telefonam de manhã, à noite, aos sábados, treinados para insistir, cansar, desrespeitar e não reagir. O telemarketing é, na minha visão, um furto moral, pois invadindo, sorrateiramente, o lar alheio, se apodera do aconchego das pessoas inocentes. É a peste entrando em casa, o tsunami devastando a tranqüilidade, ofendendo o direito à privacidade. É um invasor. E, como tal, deveria ser escorraçado. Quando um ladrão entra em casa, a lei autoriza a legítima defesa.

Por não haver ação legal contra a epidemia do telemarketing, aprendi recursos infalíveis na internet. Se, do outro lado da linha, a voz é de moça, já a vou chamando de Denise, de Neuzinha, de Juju, de meu amor. E, antes da proposta dela, faço a minha: “Que saudade, Denise, da nossa última noite. Você estava linda. Que motel maravilhoso, não? Quer ir de novo, meu amor? Já estou arrepiado só de ouvir a sua voz.” E insisto até ela mesma desligar.

E se a voz, no telemarketing, for de homem? Ora, não há problema algum. Só muda a técnica. Se for voz de jovem, a linguagem é gay e, geralmente, eu chamo o garotão de Eduardo ou de Dudu. Toca o telefone, atendo: “Dudu! Nem acredito. Estava pensando em você, com saudade. Você estava lindo em nosso último encontro, parecia a Angelina Jolie, de tão sexy. Ai, ai, meu bombonzinho preferido…” E, se for voz de homem mais maduro, reajo também masculamente: “Olha, aqui, cara. A culpada foi sua mulher. Foi ela quem marcou o encontro. Eu não queria, mas a carne é fraca. Se é para brigar, você tem que telefonar para a cidade inteira, falô?”

Ora, há esperanças no ar. Pois se, mesmo que esquecido, sal-gema ainda existe, devem ainda existir os esquecidos princípios de civilidade, de educação, de boas maneiras, de gentilezas, de atenções, de respeito. Desses vazios, surgiu a epidemia de barbáries, como as do telemarketing.

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