Santos ou imbecis?

Num restaurante, éramos quatro amigos, conversas soltas ao ar. Conversa que vai, conversa que vem, alguém se lembra de um outro. E outro, de mais outro. E, de repente, descobre-se que há parentescos entre esse e aquele e de um outro com mais um. Lembranças disso e daquilo, uma compreensão comum: foram tempos e foram vidas harmoniosos. Quase pensei em dizer que tempos felizes, vidas felizes. Mas me lembrei de minha surpresa ao entrevistar a escritora Hilda Hilst, encantadora mulher que se me tornou amiga. Pedi-lhe desse sua compreensão de felicidade. E ela não hesitou: “É uma rima: santidade ou imbecilidade.”

Para Hilda, apenas santos ou imbecis são felizes. Ora, não sou, nunca fui santo. E nem imbecil. Mas escolhi – sei disso – o lugar mais próximo dessa plenitude de vida, opção vital: Piracicaba. Aqui nascendo, foi-me revelada uma raça consciente de sua história. Ainda não sei se sou parte dela. Mas tento segui-la, meu primeiro referencial de vida. Tudo o que eu sonhei aconteceu e, ainda, acontece aqui. Fosse em outro lugar do mundo – Londres, Roma, Paris , sei lá – não teria importância. Meu sonho foi ser escritor. Aqui. Para cantar minha terra. E contar.

Ora, nunca tive humildade em sonhos. Se é para sonhar, sonho tudo, sonho com o infinito, a pretensão absoluta. A loucura delirante de João Chiarini estimulava-me. Para ele, eu – adolescente – pavoneava, como ainda pavoneio: “Jorge Amado é bobo. Piracicaba tem personagens mais fascinantes do que as dele, mais do que o mundo todo.” E eu pensava – além dos ícones de sempre, de Luiz de Queiroz a Mário Dedini – em Neguito, Zinho Muié, Cabo Júlio, do Espetete, de Nhô Lica, de Estefânia, – alguns dos personagens do romance que, no final dos meus dias, irei escrever. Irei. Vencerei céus e infernos, idade e problemas de saúde – mas contarei essa história. Jurei que a contarei. Tenho que contá-la.Já me preparo para isso.

A figura de Zinho Muié parece, ainda hoje, grudada nas ruas da cidade, roupas espalhafatosas, jóias, muita pintura. Foi, com toda certeza, o primeiro travesti assumido de Piracicaba. Nos já longínquos 1940, era personalidade marcante, freqüentando casas de famílias conservadoras. Contam-se às dezenas as pessoas identificadas apenas por apelidos, cujos nomes ficaram como que ignorados. Da mesma forma como poucos, hoje, sabem que “Madalena” é Luiz, poucos, também, foram os que reconheceriam “Zinho Muié” como Antônio Benedito. E, depois, Alex Massagista.

Chega a ser estranho pensar como, num tempo de tantos preconceitos, Zinho Muié pudesse ser recebido com tamanha naturalidade, sem discriminações. Lembro-me dele indo à minha e às casas vizinhas, fazendo penteados nas mulheres, trabalhando, também, como manicure. E me recordo de como a criançada o seguia, com espanto e alegria. Vendo-o passar pelas ruas, a meninada gritava, provocando: “Zinho Muié, Zinho Muié.” E ele, rebolando-se ainda mais, respondia: “Seu rabo que é.”

Penso, ainda agora, ser admirável esse painel humano de Piracicaba, personagens folclóricas, figuras populares que pareciam dar mais graça às ruas da cidade. Havia um não-sei-quê de quase ingenuidade, a convivência humana e simples das pequenas cidades do interior. Por trás da aparente pasmaceira, viviam-se os grandes conflitos, dramas pungentes, amores tórridos. Acho que Hilda Hilst tinha razão: havia um pouco, pelo menos, de santidade e imbecilidade em todos nós. Na história da cidade, a rima deu certo. Bom dia.

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