Saudade do que acabou

O texto foi publicado em O Diário em 2 de setembro de 1979. E depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

Pergunta-me um amigo se tenho me dedicado a “horas de saudade”. Nunca, na verdade, deixei de fazer outra coisa. Pois tenho um milhão de anos. O pangaré – que ora cavalgo – nada mais  é do que o inquieto cavalo árabe que caminhou pelas areias do deserto, que bebeu da água de oásis e descansou ao lado das tendas de sultões. Talvez tenham, os seus cascos, batido nas ruas de Damasco e Jerusalém, de Beirute ou Bagdá. Não sei. Mas sei que andou um milhão de anos. Conseguiu cavalgar sobre mares e oceanos e acabou aquietando-se à beira de um rio. Comeu das cascas das nozes do Líbano, experimentou a alfafa brasileira e mastigou as sobras dos canaviais piracicabanos.

Tenho direito às minhas horas de saudade, que atravessam os séculos e me deixam nostalgia de espaços lindos. E os filhos e netos de imigrantes sabem o que significa amar uma terra que se escolheu. Meus avós escolheram Piracicaba. O amor de opção é mais forte do que o amor espontâneo. O doído amor de escolha é mais poderoso que o amor natural, pois é amor de luta, de renúncias, de conquista. Foi deles que herdei esse amor. Hoje, se trago, ainda, nas veias, a aridez dos desertos, consegui conter na garganta o almiscarado das tâmaras. E, nos lábios, a doçura dos canaviais. Se, no coração ficou a violência das tempestades de areia, na alma ficaram cravados os estrepes de cana altiva e eriçada. Melaço e fel que se misturam no coração. Melaço de paixão que destilei. Fel do inconformismo que se não extingue.

Tenho, sim — preciso confessá-lo — saudade. E mágoa. Que alfineta e faz sangrar. Saudade dos tempos bons e felizes, da terra serena e tranquila, aquela que, um dia, foi cheia de flores e de encantos. Mágoa por não ter podido ajudar a conservá-la terna e doce, a salvo dos bárbaros que a saquearam, dos infiéis que a violentaram. Ninguém compreende — como já contou o poeta — a dor que sente, o filho ausente a “suspirar por ti”. Só que não há mais suspiros e, sim, lamentações. Tenho-os, a ambos. Não, porém, da terra que deixei. Suspiro por aquela que perdi, pela terra que meus filhos perderam, que todos nós perdemos. Novamente, para mim, também me acompanha a tristeza da destruição, pelos cristãos novos, das tendas aconchegantes. Fui, na verdade, exilado. Pela horda de bárbaros que rasgam as minhas tendas, que poluíram o meu oásis, que destruíram as minhas tamareiras imaginárias e os meus canaviais reais.

Na minha infância, ouvia dizer das ruas de Damasco, das colinas do Líbano. A fantasia voava e me parecia que eu sugava a polpa das uvas, a película das avelãs. Diziam-me que as ruas tinham tijolos de ouro no chão. Eu direi a meus filhos que nada existiu de mais doce do que o sumo da cana e nada houve de mais belo do que as flores e o encanto que compuseram a paisagem da minha terra antes de os bárbaros terem chegado. Só não contarei o lado triste da história aquele em que todo um povo se emudeceu e se acovardou diante da violência e da inquietude. Isso guardei comigo. Na minha saudade. Bom dia.

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