“Se esta rua fosse minha…” (3)

Na infância piracicabana de minha geração, a “Rua Benjamin” – bastava referir-se a ela, apenas isso – se revestia de mistérios e de segredos insondáveis. Foi uma rua de vida dupla: durante o dia, a normalidade do cotidiano de um tempo feito de preconceitos e de tabus, na verdade de uma hipocrisia sábia que permitiu convivências honestas. E, à noite, quando o mundo se afastava do Sol, era a rua boêmia, rua do pecado, misteriosa e instigante. À noite, até início dos 1950, Piracicaba como que adormecia até a rua Benjamin, onde tudo podia acontecer. E acontecia.

A “Benjamin”, como a chamávamos com intimidade cúmplice, foi a primeira rua de Piracicaba oficialmente tida como “zona de meretrício”. E é incrível lembrar como o meretrício foi e era uma instituição séria, aceita, silenciosamente admitida e compreendida. A moralidade da época, repito e repito-me, não era ambígua, mas feita de duplicidades. Havia a moralidade de dentro de casa, com maridos e pais mostrando-se e sendo homens sérios e respeitáveis, e a moralidade fora de casa, com comportamentos diferentes com mulheres teúdas e manteúdas, amantes ocasionais e as que hoje são chamadas profissionais do sexo, as putas de antigamente, meretrizes, mulheres “de vida airada”, “horizontais”. Os mais sisudos coronéis da política, com seus ares graves e sóbrios durante o dia, eram encontrados, felizes e alegres, nas casinhas simples da “Benjamin”. Ou no palácio da zona, o lugar mais freqüentado, especial por seus mistérios e delícias ocultas: a Pensão Royal, na Rua Voluntários, quase esquina da rua de sérias feições diurnas, de alegres feições noturnas. Era onde reinou Estefânia, a inesquecível.

Éramos crianças demais e nos restava, a nós, apenas ir espionar, às escondidas. E ouvir sussurros e gargalhadas, gritos de bebedeiras homéricas e de brigas sem fim. O código de cavalheiros atingia também as crianças: não se podia revelar quem fora visto ou encontrado na “zona”. A cidade sabia quem eram os freqüentadores, mas fingia não saber. Por incrível pareça, com essas máscaras de hipocrisia – tão necessárias à civilização – as famílias eram mais sólidas, mais firmemente constituídas. E, algum dia, alguém contará a história da importância das velhas e sábias prostitutas para a harmonia social e, em especial, para a iniciação dos jovens na vida amorosa.

Foi na rua Benjamin Constant que se criou a primeira Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba, sonho e generosidade de José Pinto de Almeida. Na Benjamin, existiu o fantástico Hotel Jardineira, dos Irmãos Della Giardinera, que permitiu ônibus de antigamente fossem conhecidos por “jardineiras”. E, naquele hotelzinho, houve amores rápidos e clandestinos, não mais de homens com meretrizes, mas de amantes que se ocultavam, amores de adultério e amores de estudantes. E foi naquele hotel, quando aconteceu o golpe de 1964, que nos reuníamos – intelectuais, estudantes, operários, jovens de esquerda – para tentar a contrarrevolução.

Se a “Benjamin” fosse minha – só da rua Regente até a Morais Barros – eu colocaria placas com figuras de Eros, de Cupido, de Afrodite com um aviso especial, especialíssimo: “Neste lugar, viveu e reinou Estefânia, a prostituta comunista, a puta guerrilheira.” Quem conheceu Estefânia – e eu a conheci já idosa, vendo-a pela última vez carregando cartazes contra os militares – tem que tratar com respeito e admiração prostitutas à antiga, sofridas e perseguidas, mas com almas tecidas com o mais profundo e leal humanismo. Bom dia.

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