Sem histórias, frascos vazios

picture (7)Parece mentira, mas já se passaram 50 anos desde a morte da revista “O Tico-Tico”. Ela morreu, de morte sentida, em 1958, no auge daqueles outros “anos dourados” que mostraram a cara ao mundo e desapareceram. Rápidos demais, existiram apenas para dar vontade. Mas, a revista “O Tico-Tico”…

Durante muitos anos, freqüentando sebos, vivi a expectativa de encontrar um exemplar que fosse de “O Tico-Tico”. Foi quase uma obsessão. Aliás, mais uma. Pois, à medida que o tempo passa, mais obsessões vou criando. Colecionar revistas antigas foi uma delas, numa estranha intuição de que alguém precisa recolher o que existe por aí, antes que acabe, que tudo desapareça, que as futuras gerações pensem ter sido mentira dos mais velhos. As novas tecnologias – com suas maravilhas – podem acabar sepultando o que deveria continuar vivo.

E, de certa forma, é a tecnologia que me leva a obsessões esquisitas, como a de procurar revistas antigas em sebos e livrarias. Quase briguei para a Unimep me devolver a herança que Rocha Neto me deixou: a coleção de “A Cena Muda”. Está comigo e fico feliz cada vez que folheio suas páginas. Então, vou guardando o que posso. O Chiarini me deu a coleção do “Fon-Fon”, tenho alguns exemplares de “Garota”, é quase completa a minha coleção do “Mirante”, consegui uma reedição de “Klaxon”.

O triste disso é que vou guardando por guardar, como se fosse missão ou compromisso. Pois tenho consciência da absoluta desimportância das antigas revistas infantis, das histórias de antigamente, dos contos da carochinha para a criançada de agora. Nem os meus netos querem ouvi-las e eu sei histórias sem fim para contar. Eles querem heróis cibernéticos, aqueles bichos feios e esquisitos, ação, rapidez, agitação. Quase fui vaiado quando lhes propus contar a história do “Barba Azul”, da “Bela e a Fera”, até mesmo da “Cinderela” ou da “Bela Adormecida”. Olharam-me como se eu fosse idiota. Acho que sou. Mas tenho uma outra certeza absoluta: o mundo vai-se tornando cada vez mais desumano por falta de contadores de histórias de carochinha, de avós que as contem ao pé do fogão nem que seja o de microondas.

Histórias salvam vidas, purificam almas, alegram a existência. Crianças sem histórias ficam frascos vazios. Basta ver o milagre da Sheerazade, sobrevivendo ao sultão por contar mil-e-uma noites de histórias. E uma outra, do Quênia, onde a mulher do rei – toda rica e poderosa – definhava enquanto, num casebre ao lado, a mulher de um homem paupérrimo esbanjava alegria e saúde. O rei quis saber qual o segredo. O homem pobre contou: “eu a alimento com a carne da língua.” Bobalhão, o sultão mandou comprar todas as línguas de boi, de carneiro, de passarinho. A mulher continuou infeliz. Então, o homem pobre explicou-se melhor: “a carne da língua” era o alimento da fala, as histórias que ele contava para a amada, os contos de fadas, as anedotas, os elogios. Contar histórias enriquece a alma de quem conta e de quem ouve. Contar histórias é impedir que desapareça a própria história humana.

É essa minha saudade das revistas antigas. As poucas coisas lindas que eu sei, aprendi-as na história da vida em quadrinhos. Ainda sei histórias, muitas e muitas. Mas não tenho para quem contar. Bom dia.

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