Sem vergonha de não ter vergonha

Corinthians 2Falar que corintiano é tal qual mulher de malandro que gosta de apanhar é incorrer em lugar comum. Convenço-me de ser algo muito pior do que isso, algo que beira à amoralidade, ainda que paixão esteja acima de todos os códigos, sejam quais forem. Ser corintiano nem mesmo é doença, a menos que se considerem aquelas que não têm cura, para as quais não há remédio, solução, saída. Na verdade, na verdade, trata-se de uma maldição, praga de mãe, castigo dos céus, desdita. E o corintiano, um sado-masoquista, gosta.

Já cheguei a deixar mulher, filhos, meu jornal, esquecendo-me deles por toda uma semana, para andar atrás do Corinthians, naquele campeonato que rompeu o tabu dos 22 anos sem títulos. Carreguei bandeira em carreata, berrei e me esgoelei em arquibancadas, consegui uma bandeira com a assinatura de todos os jogadores, fruto de minhas amizades com a diretoria corintiana. De vez em quando, eu ia a São Paulo, ao escritório do Wadih Helu, apenas para conversar a respeito do Corinthians, saber das novidades, dar palpites, ouvir promessas.

Não me lembro mais das noites em que, antes de dormir, fiquei me revirando na cama, atrapalhando o sono da companheira, por algo que, para mim, era uma questão vital, existencial: eu ficava, mentalmente, escalando o time do Corinthians conforme me parecia mais adequado para o próximo jogo. Tive paixão futebolística apaixonada por Baltazar, o ídolo negro que começou a jogar futebol aqui em Monte Alegre. Eu encapava meus livros e cadernos estudantis com fotos de Baltazar. Meu time de jogo de botões era fruto de furtos em casacos familiares, botões imensos que, de repente, minhas tias e tios, minha mãe percebiam ter desaparecido de suas roupas.

Nunca apanhei de meu pai, um homem doce. Mas ele me deu uma bofetada que me fez rolar alguns degraus na arquibancada do saudoso Estádio do XV, na Rua Regente. Víamos o XV jogar, mas meus ouvidos estavam atentos ao que o locutor do estádio informava num jogo importante do Corinthians contra o Vasco. E ouvi, com a alma em pranto, cada anúncio de gol do Vasco. Um, dois, três, quatro gols dos vascaínos, as lágrimas escorrendo-me dos olhos enquanto amigos riam-se de mim, felizes com minha desgraça. Então, veio a reação: primeiro gol do Corinthians. E o segundo. Meu coração voltou a acelerar. E o terceiro. Quando o Corinthians empatou, comecei a berrar, a saltar, a pular na arquibancada o XV como se fosse um maluco, um doido tomado de ataque epilético, histérico, sei lá o quê. Meu pai se assustou e me deu uma bofetada que me fez rolar degraus da arquibancada. Então, me acalmei.

Contra o Flamengo, na quarta-feira, já pela manhã percebi minha pressão arterial estar desregulada. Não consegui me alimentar e tive vontade terrível de voltar a fumar, como se eu precisasse de não alguns, mas de muitos cigarros. Andei pelo jardim, fui até a rua conversar com um amigo corintiano que, também, estava pálido. Decidi escrever mais do que habitualmente, para esquecer, para não pensar, o medo de uma derrota antecipada que, pressenti, poderia levar-me ao infarto. Imaginei o que diriam meus filhos: “Papai morreu pelo Corinthians.”

Ora, sei que escrevi o Ronaldo esteja sendo uma enganação, um gorducho que tapeia o sonho corintiano. Mas, quando o vi entrar em campo e diante do delírio da torcida, meu coração queria explodir e quase fiz um poema de amor ao gordo. Meu Deus! E quando ele marcou o segundo gol? Berrei, pulei, senti a alma leve como a de uma criancinha, vi o mundo tornar-se generoso, pacífico, amorável. A alegria, posso garantir, era como se me tivesse nascido mais um filho, alegria completa, plena.

Depois da derrota – e odiarei Wagner Love até o meu último suspiro – desabei, meu fim de mundo, meu mundo destruído. Por alguns minutos, ficou a desolação: “E agora? E o centenário?” Então, lentamente, uma gotícula de esperança brotou no coração. E, depois, outra. E mais outra até que, finalmente, veio a resposta: “Vamos partir pra outra. Curintia, Curintia, tum, tum, tum.” Dormi pensando no Campeonato Brasileiro que irá começar. E com uma certeza: sou, diante do Corinthians, um desavergonhado. E não me envergonho de dizer que não tenho vergonha disso. Bom dia.

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