Semeando o dilúvio

picture (19)Era tal o preciosismo de Flaubert – em busca da perfeição literária – que, dizia-se, passou a vida à procura de uma palavra para substituir outra, pensando tê-la usado inadequadamente. Palavras podem matar. Por isso, o mestre hindu ensinou a lição maior da sabedoria: o silêncio. Tolos – entre os quais me incluo – nunca aprendemos.

Acompanhando o massacre que a maioria da chamada grande imprensa busca fazer do governo Lula – apesar de seus êxitos notáveis – e estendendo-o à Dilma Roussef, lembrei-me de um texto, de certo articulista da “Folha”, há alguns anos passados, acho que uns cinco anos. Lembrar daquilo foi rever – com nitidez doída – cenas de um filme feito de fel. O artigo ressuscitava uma velha escola jornalística rançosa, que marcou a minha geração e que a nada levou. Bebíamos o fel de Carlos Lacerda, de David Nasser, de Chateaubriand, de Edmar Morel – e, intoxicados de rancores, destilávamos os nossos. O Brasil terminou em tragédia.

Ora, apenas ingênuos, tolos e comprometidos não perceberam, desde o primeiro mandato, a orquestração de estridências para abalar os alicerces de Lula. Suas fragilidades são conhecidas, mas machucá-las agora é evocar as bruxas. Aconteceu antes. E os atores são os mesmos segmentos rançosos da sociedade brasileira, posseiros da economia, dos grandes veículos de comunicação, dos bancos, das negociatas sem fim. Se a história se repete como farsa, há que se lembrar ser, ela, perigosa, capaz de criar abismos intransponíveis, fraturas que não se recompõem. A repetição dessa burrice mostra-se patológica, soando como roncos de moribundos.

O articulista da “Folha” não se importou onde atingir, se fígado, baço, coração ou a alma de Lula. E confirmou que ódios políticos não têm limites. O título do artigo foi “Alcoolismo marca três gerações dos Silva” – título à Chateaubriand – enveredando por psicologismos de botequim. Recolhia confissões amargas e dolorosas do Presidente Lula, registradas em livro – e, portanto, em outro contexto – doendo-se da saga de uma pobre família nordestina na secular toada da miséria de um Brasil miserável: violência, abandono, alcoolismo. Até a avó de Lula ficou exposta, pobre mulher de que os próprios netos – com saudade compassiva – se lembravam: “caía no barreiro e ficava gritando para a gente ir acudir ela.”

Lembrei-me de Flaubert por ver-me procurando a palavra correta para qualificar aquele texto: indecente, impiedoso, repulsivo, torpe, desprezível? Revi, ainda vivos, os panfletários que ensinaram ferocidade à minha geração. Aquele Brasil – que nada respeitou – esfacelou-se diante da autoridade esfacelada. E os melhores pedaços foram abocanhados pelos mesmos grupos ainda insaciáveis.

Tem sido óbvia, pois, a manobra pelo fracasso do governo de Lula, que responde com sucessos aplaudidos em todo o mundo. Na verdade, Lula teve parte de culpa nisso, trocando a fidelidade ao povo pela aliança com coronéis de todos os naipes. Para eles, não há cidadãos, mas consumidores. Não há país, mas capitanias hereditárias. Não há nação, mas mercado. O fracasso de Lula teria sido, para essa gente, a prova da tese secular que lhes interessa: o povo tem que ser tutelado. No entanto, o impiedoso texto do articulista acabou sendo, penso eu, ser um divisor de águas. A partir dele, Lula não teve mais ilusões: o seu lugar e sua força estão no coração do povo que o elegeu por esperança, esse povo formado por muitas gerações de Silvas, sofridos, desamparados.

Aquele artigo contrapôs um Brasil de avós enlouquecidas, que bebem pinga por desespero, a um outro Brasil: o dos que saboreiam champanha nos salões de Higienópolis. Insensatos, tentaram e ainda tentam entregar Lula às turbas. Criam um Luiz XV às avessas: “Après Lula, le déluge.” Pois, se Lula fracassar neste final de mandato, depois dele, virá, sim, o dilúvio. Quem sobreviver verá. Bom dia.

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