Serviçais, preconceito e hipocrisia
Já está provado que ficar muitas horas diante do computador, navegando pela internet – ou estar em redes sociais e jogos – embota a capacidade de reflexão. Com raras exceções, não se pensa e não se reflete além da ponta do nariz. De repente, uma ideia ou tema são abordados sem se avaliar as diversas dimensões deles e seus significados. É o que aconteceu, parece-me, quando se revelou que o Brasil é campeão mundial de empregados domésticos, cerca de 7 milhões de pessoas. A grita foi de quem se sentiu insultado ou que ignorasse a nossa realidade. E as inevitáveis – mas fragílimas – comparações com “escravatura branca” começaram a povoar as cabeças acadêmicas.
Em nossas cabecinhas formadas pela cultura colonialista, qualquer emprego sem diploma é menosprezado. E se forem serviços gerais – especialmente os de domésticos – os fariseus e hipócritas fazem o seu falso protesto pela imprensa e nas academias, como se eles próprios não precisassem de faxineiras, de lavadeiras, passadeiras, cozinheiras. Essa, na verdade, é uma herança luso-espanhola, quando os senhores da casa grande – e suas excelentíssimas senhoras e filhas – não moviam uma palha para qualquer tipo de trabalho. Marqueses, barões, condes, membros da corte – para todos eles, trabalhar era uma vergonha. Portanto, não a qualidade do trabalho, mas o próprio trabalho subalterno é que era vergonhoso. Ainda hoje, muitos filhos de famílias ricas não admitem trabalhos ditos subalternos. Mesmo que tenham perdido suas fortunas. Afinal de contas, faz parte da história: “pai rico, filho nobre, neto pobre.”
É espantosa – pelo menos para mim – a incrível repercussão diante da PEC que redefine a situação trabalhista de empregados domésticos. Isso prova, pelo menos, que eles, empregados domésticos, são uma das mais sólidas bases de nossa sociedade. E seus direitos são intocáveis, ainda que nem sempre respeitados.
Se há patrões estúpidos ou ignorantes, cruéis e desrespeitosos, este é outro problema. Pois eles existem na indústria, no comércio, nas empresas. A dignidade do trabalho foi esquecida em favor da produtividade. É a base do capitalismo selvagem. Não é o trabalho – por mais humilde seja – que é vergonhoso. São as condições sociais e familiares em que o trabalho se realiza que determinam a sua dignidade. Se há madamas que tratam seus serviçais com desrespeito, são elas as malfeitoras que se desrespeitam a si mesmas.
Os serviços domésticos são – em meu entender – de necessidade vital no mundo que construímos, quando pais de família não ficam e não cuidam das casas. As domésticas – além do respeito que lhes é devido e dos agradecimentos que lhes deveríamos fazer – são o motor da família. Da mesma forma, servidores com trabalhos aparentemente inferiores são a base de toda a nossa estrutura social. Se a empregada doméstica lava, passa, cozinha, varre, limpa banheiros – o mesmo acontece com faxineiras nos escritórios e nas fábricas. E os garis que limpam nossas ruas? E os lixeiros que recolhem os nossos dejetos? E encanadores que enfiam as mãos em nossos esgotos? E os garçons que nos servem em bares e restaurantes? São serviçais, sim. E, como em relação às domésticas, com trabalho de incontestável dignidade.
O mundo pode prescindir, em dado momento, de médicos, de advogados, de dentistas. Mas não resistirá uma semana sequer se todos os domésticos e serviçais pararem, se o lixo não for recolhido, se os garis não limparem as ruas, se as domésticas não cuidarem das casas, se os frentistas não colocarem combustível nos veículos, se os zeladores não cuidarem dos edifícios e condomínios.
As madamas que exigem que as babás desfilem uniformizadas pelos shoppings são as mesmas tolas que exibem seus cachorrinhos de estimação. Já as vi e me senti envergonhado por elas. Aquele programa “Mulheres Ricas” mostra muito mais a estúpida e falsa realidade dos novos ricos brasileiros, do que o universo respeitável e respeitoso dos domésticos.
Vejam bem. Não tenho dúvidas de que, hoje, um marido, entre a empregada e a própria mulher, ficaria com a primeira. E a mulher, também. Que se vá o marido, mas que fique a empregada. Os teóricos da irrealidade – achando indigno o trabalho doméstico – acabarão, se confrontados, por confessar que eles também dependem da faxineira, da lavadeira, da passadeira. Seja em casa, seja em empresas especializadas. Aliás, não seria outra investida do mercado, essa tentativa de falsear a realidade e trocar os empregados domésticos por empresas que fazem o mesmo serviço? Ou quem faz a faxina, para a empresa de limpeza, não é gente?
A única verdade em tudo isso: todos os que trabalham têm que ter garantias trabalhistas, previdenciárias e direitos garantidos e assegurados. Até hoje, maus patrões não cumprem sequer com o mínimo de seus deveres. Bom dia.