Sobra o silêncio

pictureLúcida, culta, vivida, a mulher – há alguns anos que se foram – olhou-nos fixamente, entre assustada e perplexa. Ela ultrapassara os noventa anos, uma história de lutas e de conquistas. Cinderela na juventude, a vida lhe cobrara preço alto, entregando-lhe as rédeas e o comando de um pequeno reino. Com a enfermidade dos pais, depois do marido – filhos pequenos, irmãos descuidados –tudo lhe pesou nos ombros. Sua síntese: “Fui mãe de meus pais, mãe de meu marido, mãe de minha família. E eu, onde fiquei? Quem sou eu?”

Naqueles anos, eu ainda acreditava ter respostas a lhe dar, à doce e aturdida mulher. Dependendo da oportunidade e com minhas certezas, pensei ter coisas a dizer. Conforme o que ela me contasse, eu poderia exaltar-lhe a coragem, enfatizando-lhe os deveres cumpridos, o heroísmo de sua missão, a lição de vida. Depois, em outro momento, poderia, talvez, tomar-lhe as mãos e, apenas, permanecer ao lado dela, ambos olhando o horizonte, ouvindo ecos de perguntas mudas ou silenciosas: “Para quê, por quê?” Mas isso foi há alguns já distantes anos, quando eu pensava ter respostas certezas. Cadê? Agora, é silêncio.

Foi o que, a vida toda, li nos olhos das pessoas, nos meus também: “Cadê eu?” Lembro-me do olhar de meu pai, mergulhado no infinito, após a morte da mulher amada. Ele não a buscava, perguntava por si mesmo: “Cadê eu?” Mil vezes, eu me vi olhando no espelho em busca de mim: “Cadê eu?” E mil pessoas conheci, cada qual perguntando-se a si mesma, ou perguntando a alguém: “Cadê eu?”

Aquela velha senhora penso ter-se ido sem encontrar a resposta que buscara. Mas ajudou-me muito, como se sua perplexidade se somasse às minhas. Pois – apesar de algumas recaídas – deixei de perguntar-me: “Cadê eu?” Não me perguntem como aconteceu, pois eu teria que retornar a um professor de minha adolescência para ele tornar a explicar-me o que me segredara: na vida, umas pessoas acham, outras encontram, algumas descobrem. Achar, segundo ele, é encontrar por acaso. Encontrar é achar, procurando. E descobrir é achar pela primeira vez. Logo, apenas quem procura acha. Mas – depois de achar – faz-se o quê? Por isso, talvez, mais sereno seja aquele que pouco procura. Ou que não acha.

Com aquela dama, não sei se aprendi, mas admito ter buscado saídas menos inquietantes. Pois resolvi entender não ser dono nem mesmo de minha vida. Fica mais fácil: a vida é um todo, sou simples partezinha disso. Logo, vivo menos em mim e por mim mesmo, sou mais vivido pelos outros, pelas coisas, pelo mundo. E neles. E com eles. Então, é como se fosse a vida que me vive e não mais eu que a vivo. Quanto mais faço, mais a atrapalho. A vida e o mundo existem apesar de mim. E sem mim. Amanhece e nada se pode fazer em contrário. E anoitece. E chove e troveja e neva. Viver é, primeiro, verbo intransitivo.

Se a velha dama não se tivesse ido, talvez pudéssemos, hoje, ficar lado a lado, olhando entardeceres, anoiteceres, vendo chover, trovejar, relampagar, chuviscar. E –quem sabe? – sem mais querer perguntar: “cadê eu?” Ela estava em tudo e era tudo mas lhe parecia pouco. Sempre, tudo é pouco. Quando tentado a perguntar-me de mim, olho para os netos e sei: estou neles, sou eles. Também. Bom dia.

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