Solidarismo, Montoro e…

SolidarismoEstou preparando-me para, daqui a poucas semanas, mergulhar em águas mais profundas do que as do simples cotidiano, ainda que este seja fértil em surpresas tanto agradáveis quanto dolorosas. São anotações sem fim, documentos, fotos, correspondências, guardados e lambidos, como se fossem uma cria, para um projeto que me irá consumir o restante de meus anos, que espero sejam ainda muitos. Propus-me e irei escrever – se os deuses misteriosos me ajudarem – uma história, não minha, mas de um tempo que se transformou tão rapidamente que a passagem se tornou atropelamento. O cotidiano das coisas, já me preparo para deixá-lo a novas gerações, a profissionais que tenham mais estômago para suportar a mediocridade e a rapinagem de uma época sem futuro. Já aconteceu tudo aquilo que se temia: a tragédia de Deus, a tragédia dos tempos, a tragédia do homem.

Tenho, no entanto, esperanças. Sem ser otimista, espero. E acredito em retornos, que são eternos. Confesso, porém, a angústia de – revendo, relendo, recuperando – ver quanto perdemos, quanto deixamos que nos roubassem, quanto nos enganos diante de novidades que nada tinham de novo, mas que eram apenas novidades. E, portanto, passageiras, tragicamente passageiras pelos estragos que fizeram.

É-me comovedor lembrar-me de quanto Franco Montoro foi, intelectualmente, importante em minha vida. Conheci-o através de João Chiarini, num momento agônico de minha mocidade quando, afastando-me do comunismo, eu me sentia no vácuo, mergulhado em vazio, sem ver luz alguma no final do túnel. Montoro, naquele início dos 1960, era apenas deputado estadual, além de notável intelectual e líder cristão. Suas idéias contagiavam, sua paixão por uma ordem social justa e humana imantava. Franco Montoro era de uma simplicidade tal que João Chiarini, não tendo como hospedá-lo em sua casa, levava-o a se hospedar em meu pequenino apartamento de então recém-casado. E as conversas se alongavam madrugada a dentro.

A partir de Montoro, comecei a entender os sonhos de uma economia humanista, do solidarismo, descobrindo a formidável capacidade de reflexão de um dos mais importantes economistas do mundo, o Padre Louis Joseph Lebret. Fôra Lebret um dos inspiradores do Plano de Ação desse também notável prof.Carvalho Pinto, governador então de São Paulo. E, com ele, figuras gigantescas como Plínio de Arruda Sampaio, Paulo de Tarso, Chopin Tavares de Lima. Na dimensão sócio-política, foi a esses homens que Franco Montoro me levou, impregnando-me de novos sonhos, que se iam consolidando no Partido Democrata Cristão (PDC), do qual ele era um dos líderes maiores, ao lado de Antônio Queiroz Filho.

Minha redescoberta, à época, à Igreja Católica não aconteceu de repente, nem por questão de fé. Era um mundo novo que se abria impulsionado, primeiro, pelo Concílio Vaticano II, depois pelo surgimento da Populorum Progressio. No Brasil, uma geração de intelectuais pulsavam fortemente a partir das idéias de Lebret e de Teillard de Chardin, de Maritain e de Mounier, de Alceu Amoroso Lima, sempre em disputa intelectual com Gustavo Corção, de uma terceira via, de solidarismo e humanismo. Era, sim, possível um mundo novo. Era, pois o golpe de 1964 levou tudo para o brejo, abrindo portas para essa tragédia que, orquestrada pelos Estados Unidos da Guerra Fria, criou o “século do nada”, o que passou.

O golpe militar rachou grupos, dividiu ideologias, matou sonhos. Carvalho Pinto e Montoro se afastaram um do outro e me recordo da carta aberta que escrevi a Franco Montoro quando ele apoiou a candidatura de Orestes Quércia a Senador, contra a de Carvalho Pinto. Franco Montoro viria, depois, a ser um dos fundadores do PSDB, em repúdio ao PMDB de Orestes Quércia, sobre o qual sempre pairaram graves acusações de corrupção, o homem forte, hoje, ao lado de José Serra. Aliás, José Serra, ao retornar ao Brasil, achegou-se a Montoro e Mário Covas, assim como Fernando Henrique o fez.

A lembrança de Franco Montoro, humanista e cristão, continua viva em mim, com um misto de gratidão e de respeito. Foi com ele que descobri as possibilidades imensas de um novo cristianismo, solidário e humano, diferente do cristianismo apenas de fachada. Havia a frase, acho que cunhada por Lebret, de que os “cristãos voltariam ao cristianismo”. Nessa ideia, estava a terceira via, o solidarismo. Em política, no entanto, aquela herança admirável acabou sendo apoderada pelos tucanos. Como imaginar um solidarismo cristão com a ganância neoliberal? Viver muito chega a parecer castigo. Bom dia.

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