Sossego

Quando me acontece, é prenúncio de crise, ameaça de colapso, sempre me refiro à dúvida crucial: “Xícara, escreve-se com xis ou ch?” Meu primeiro recurso é de ordem estética, avaliando como fica mais elegante: com xis, é feio; mais bonito com ch, chícara, com alcinha para pegar. Na dúvida, rendo-me: o cansaço chegou. Logo, há perigo.

Ora, era sobre o xis e o ch que eu filosofava, quando li a respeito de mais malandragens no Senado e da farsa dos deputados em relação a um arremedo de reforma eleitoral. Há ainda ingênuos acreditando em democracia à brasileira. Gostaria de ser como eles. Mas, em consciência, sei que, no Brasil, criamos diversas modalidades de democracia: uma, que pretende ser de verdade, outra de conveniência e, quase sempre, a que é para inglês ver.

Meus mil anos de jornalismo – e de janela – anteviram confusão. Democratas se esquecem de duas armadilhas perigosas: o “pensamento único” e o “politicamente correto”, eficazes instrumentos de idiotização coletiva. A Santa Inquisição é brincadeira perto das novas fogueiras. Ou se aceita o dogma ou se é jogado aos leões e à lenha. Pensar é crime. Refletir é pecado. Discordar é afronta. Dialogar, o que é isso mesmo? E fazer oposição a governantes, essa ousadia suprema?

Os melhores democratas estão sempre na oposição. Quando no poder, descobrem o relho e gostam de usá-lo. A sabedoria bíblica não falha: “vinho novo em barris velhos.” Na oposição, a força do argumento. No poder, o argumento da força. Nada há de novo no front. Em democracias “para inglês ver”, a inteligência é soterrada. Vale a força.

Ai do atrevido que discordar dos tocadores de bumbos, das procissões nas ruas: gays, feministas, índios, negros, sem terra, sem teto, sem-indenização-da-ditadura. E dos que defendem o aborto, a maconha, a descriminalização das drogas, regulamentação da prostituição, ou os que colocam, no mesmo balaio, pedras, plantas, gente e animais. Ai, até, de quem não apreciar forró, axé, barulho, grosseria, palavrão, pornografia, pornofonia, incivilidade. E ousar discutir contracultura, casamento homossexual, legalização da prostituição, do bingo, do jogo do bicho. Ah! esses fascistas, nazistas, elitistas, privilegiados que ousam refletir ou dialogar ou discutir. Ou apenas pensar. Os dogmas estão postos. Quem ousar apenas discuti-los há que ser execrado. A inteligência atrapalha.

De cansaço, andei quieto. Minha dúvida era uma só e crucial: chícara ou xícara? Pensei no velho amigo, um cinqüentão cobiçado por mulheres que ainda gostam de homens. Divorciado, atleta, amante de jazz, com casa na praia e na montanha, ele se sente descriminado, à margem. “Vou lutar por meus direitos. Pertenço à minoria. Sou branco, rico, bonito e macho.” Fiquei em dúvida: macho ou maxo? Seja como for, Deus o ajude.

Passado o feriado, sinto-me melhor. Consegui dormir dez horas seguidas, milagre dos céus. Já escrevo xícara com xis. Enxergo tudo lindo, lindíssimo: esse mundo cinzento, gelado, chuvoso, com raios e trovoadas, a humanidade correndo pelas ruas, atropelando-se, xingando, bufando, brigando. No meu canto, sinto-me lépido, fagueiro, agradável, leve, gentil, galante, quase arrisco dizer que deleitável e desfrutável, só não me digo gostoso para não atiçar mentes maliciosas. Descansado, o mundo e eu somos e estamos bem-vindos um ao outro: “bem-vindos como a primavera, como as rosas de maio, como as chuvas de setembro.” –conforme, antes, poetas poetavam.

Se são brancos, brancos que se entendam. E se negros, negros que se entendam. E que meu amigo lute pelos minoritários, brancos, ricos, bonitos e machos. Paz na terra. Que eu vou dormir mais um pouco. Bom dia.

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