Tolerantes

TolerantetsUm dos aspectos mais dramáticos de nosso tempo, penso eu, é que nos contentamos em definir o ser humano apenas como animal racional. Isso tem bastado, sendo conveniente. Esquecemos do ser reflexivo e, por isso, a reflexão está se esvaindo diante de meias verdades impostas e não contestadas. Talvez, seja a vitória do “pensamento único”, que buscou submeter, pela economia, homens e nações. “Pensamento único”,o “politicamente correto” são expressões forjadas que se universalizaram, roubando, ao homem, a sua capacidade de refletir e, então, decidir-se até mesmo por outros caminhos, mesmo os considerados da contramão. Quem não pensa a partir do “pensamento único” pensa errado, essa é a pecha para evitar a reflexão. E quem não veste o uniforme imposto está à margem.

Democracia tem sido uma das palavras mais vilipendiadas e distorcidas destes tempos. Fala-se em democracia e liberdade como se fossem bens absolutos, não se admitindo outras formas e fôrmas que não as desenhadas pelos Estados Unidos para o público externo. Não há, porém, democracia sem leis e regras justas. Nem liberdade absoluta, pois esta exige, pelo menos, responsabilidade diante de seus limites que esbarram justamente quando surge o outro. Aliás, nunca é demais manter vivo o lamento de Madame Roland – escritora, pensadora e ativista durante a revolução francesa – que exclamou: “Liberdade, liberdade! Quantos crimes se cometem em teu nome.”

Como que para completar a construção do homem-robô, a apologia da tolerância é um dos mais perigosos, ainda que lento, dos venenos a anestesiar consciências e a frear discernimentos. Ora, a tolerância surge como uma necessidade vital no sentido religioso, instrumento moral para a convivência pacífica e decente entre as mais diversas confissões religiosas. A tolerância é protegida, na história e na política, para impedir violações de direitos em virtude de convicções religiosas. A partir daí, estende-se a outros setores da vida, incluindo a ciência.

No entanto, a banalização da tolerância levou-nos a perigos ainda maiores, já que passou a atingir estruturas jurídicas e políticas, incluindo o direito e a lei. Ora, não há como se falar ou se admitir a tolerância quando estão em jogo valores essenciais da existência, como a paz, a liberdade responsável, a vida. Como tolerar a corrupção que destrói nações em seus alicerces? Como tolerar a “tolerância da Justiça” em relação aos poderosos e sua rigidez diante dos infratores menos perniciosos? Quando Adhemar de Barros lançou, de si mesmo, o slogan “rouba, mas faz”, vencendo a eleição a partir de acintes e menosprezos à ordem moral e jurídica, o Brasil inaugurou uma nova escola que ainda perdura, apesar de um golpe militar que, a pretexto de combater a corrupção, alimentou-a em outros níveis e com outros métodos.

Quando se vê um Tiririca candidato a deputado, zombando e ridicularizando uma democracia já ridicularizada, a tolerância diante desse acinte é perniciosa. A lei da ficha suja não está funcionando. Tiririca quer ser candidato porque “com ele, pior não fica.” E o povo tolera, como se tolerância diante do desrespeito, tolerância diante da desordem fossem um bem. Tolerância diante da ascensão de canalhas e aventureiros não é virtude alguma. Pelo contrário, é vício que mina e destrói alicerces de responsabilidade. Até na religião, tolerância tem limites. Qual a razão justa e honesta para se tolerar que, em nome de religião, se cometam crimes contra o povo, na indústria e no comércio da fé?

A banalização da tolerância – e o entendimento errado ou conveniente dela – transforma o bem num mal. E ainda pior porque impede o discernimento. Quando alguém ou o próprio povo aceita o “rouba, mas faz”, está sendo conivente, cúmplice. Ou com vontade de agir da mesma maneira. Bom dia.

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