Tristeza do jeca

Evitei ir vê-lo. Era medo. Pois eu sabia como iria encontrá-lo. Como presenciar e aceitar sua agonia? E se ele, realmente, se fosse  para sempre? Dar-lhe adeus seria o mesmo que despedir-me de mim. Acabar-se-ia-me a própria identidade. Sem ele, quem haveria de tornar-me eu?

Conduzido pela alma, não resisti. Por que não um último olhar, um último adeus, se fosse realmente o adeus último? Fui. Olhei e fechei os olhos. Estava um cadáver, o meu grande amor. Seus ossos apareciam em forma de pedras tristes. Um filete de líquido tímido escorria-lhe das entranhas. E eu não soube fossem lágrimas de dor e desalento, se um rastrozinho de sangue feito de uma espuma esbranquiçada e sem vida. Meu rio, cadê meu rio? E eu, o que começava a sobrar de mim?

Eu sempre fui um jeca, caipira. É minha identidade, esse ser caipiracicabano. Foram-me privilégio e orgulho, caipira de Piracicaba, caipira do Piracicaba. Foi assim que o primeiro indígena se batizou: caipira. Aquele que está na mata, na água, com o peixe. Onde houver um rio lá está ele, o caipira: em tupi-guarani, caá (mato),  i (água), pira (peixe). E eu nascera caipira do Piracicaba, o mais belo de todos os rios.  Foi  um destino privilegiado. E agora?

Pequenino – cerca de  três, quatro anos – meu pai me levava, quase todas as tardes, à beira do rio. Aquela imensidão de água conduzia-me ao êxtase, tão bela, poderosa, tal qual um mistério que eu jamais entenderia. O rio, o meu rio, foi meu primeiro entendimento da existência de Deus. Pois era lindo demais, poderoso, ao mesmo tempo sereno e cheio de fúria, ribombando como um trovão quando suas águas caíam do Salto e, em seguida, deslizando mansamente diante de olhos humanos.

Meu pai – um atleta, diretor do Clube de Regatas – tirava-me as roupinhas, carregava-me para, em seus braços fortes, embalar-me nas águas do rio, minhas águas batismais. Comecei a dar as primeiras braçadas. E juro pelo que for sagrado – embora tenham-se passado 70 anos – ainda vejo o sorriso dele, ainda ouço suas risadas quando, por fim, eu me agarrava a seu pescoço. Ele, meu herói por proteger-me; eu,  o pequenino herói dele por ter aprendido a nadar.

Havia um trampolim, com alguns andares, plantado no próprio leito do rio, do meu rio. E, do trampolim, aprendi a voar, tornei-me passarinho. Vejo – ainda agora, ainda agora! – meu pai estimulando-me, “salta, salta, pode vir sem medo.” E eu, sem medo, saltava, sabendo que aquelas águas eram meu berço e que, nelas, meu pai lá estaria acolhendo-me. Vejo-me voando nos espaços, próximo daquele também imenso céu azul, em tardes mornas e quentes, o Sol já quase escondido atrás da floresta encantada. E, de passarinho, transformava-me em peixe, mergulhando nas ondas do rio, do meu rio.

Tornei-me garoto. Continuei no rio. Aprendi a catar pedrinhas com o mais encantador de todos os loucos de minha terra, o Nhô Lica. Ele – de terno, gravata e bengala – ia, todas as tardes, garimpar as margens ribeirinhas. Colhia uma pedra, observava-a, jogava-a fora. Outras, porém, ele as guardava no bolso do paletó, o rosto iluminado de alegria. Para ele, eram pedras preciosas que ele guardaria no cofre de um banco, onde um gerente generoso também participava da fantasia. Nhô Lica me ensinou as escolher as pedras, a diferenciar falsas de verdadeiras. E eu acreditava. Ao encontrar uma, eu gritava: “Nhô Lica, Nhô Lica… Este é um diamante?”

Aprendi a ficar quietinho, sentindo peixes atrevidos roçando-me nas pernas. Nunca pesquei nenhum. Como pescar quem, para mim, era um irmão? Então, vi jaús, dourados, pintados voando para enfrentar a fúria do Salto. E a luta de pescadores querendo detê-los. E o estranho ritual – para mim, sacrílego – de se comer lambarizinhos fritos nas casinhas de pescadores, ouvindo histórias de fantasmas, lendas de minha terra. E  as mentiras deles.

Amei à beira do rio. Chorei nas águas do rio. A cada amor perdido, minhas lágrimas misturaram-se às do rio. Escrevi à sombra das árvores, vendo a placidez das águas, ouvindo o seu murmurejar. Conhecer, de bote, as curvas, a intimidade, os escondidos do rio foi, em minha vida, como descobrir, de pouco em pouco, o corpo da mulher amada. Ou apenas os braços generosos de meus pais.  O rio foi meu berço, minha casa, meu quarto, minha alcova e sempre quis viesse a ser, ele,  o meu túmulo. Nascer e morrer no rio – que destino mais glorioso?

Agora, não sei mais nada. Meu rio está morrendo. Sem ele, deixarei de ser jeca, o caipira. As matas quase desapareceram, todas elas. Os peixes desapareceram. As águas foram sugadas pela estupidez humana. Minha alma está indo-se com ele. Eu mesmo já me vou, pois não sei mas quem sou. Sem meu rio, em que começo a me transformar? Cadê o meu rio, cadê o jeca que estava em mim?

(Esta crônica foi publicada na edição de 26/09 do Correio Popular de Campinas.)

2 comentários

  1. Sonia Maria Delfini em 30/09/2014 às 09:17

    Ai que lindo! E que doído!!!!!

  2. Delza Maria Frare Chamma em 30/09/2014 às 17:31

    Linda demais! Impossível para qualquer piracicabano não sofrer junto ao autor ao acompanhar sua tristeza que é nossa tristeza! Choramos com o Rio Piracicaba e, por ele, junto ao qual passamos também nossa infância.

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