Um jantar com José Wilker

Reprodução/CEDOC Rede Globo

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Não entendo, até hoje, como –  em uma família então pobrezinha como a nossa – pudéssemos receber tantos intelectuais, artistas, poetas, músicos, atores, escritores, pintores. E como podia haver a maravilha da arte em nosso cotidiano, apesar de tantas dificuldades, tragédias e lutas. Minhas irmãs, Marlene e Sally, pianistas, Marlene grande concertista; meu  pai, violinista; minha mãe, pintora. Outros irmãos, cada qual tocando um instrumento. E eu – bebendo daquele encantamento –  querendo aprender um pouco de tudo, arranhando o piano, o violão, o violino, mas mergulhando na escrita.

O teatro foi uma das minhas grandes paixões. E sei que me deixei fascinar a partir do dia em que João Chiarini levou, para visitar-nos, o imortal Procópio Ferreira, o maior ícone do teatro brasileiro. E, ainda por cima, pai de Bibi Ferreira. Procópio, em nossa casa – e após deliciar-se com quibes de minha mãe – disse que queria agradecer a hospitalidade. E, para nosso desllumbramento e vaidade, interpretou, apenas para nós, o seu maior sucesso, o “Deus lhe pague”, de Joracy Camargo. Foi uma choradeira só. E eu, de um ímpeto, pedi-lhe um autógrafo exatamente num livro que me fascinava: “Cyrano de Bergerac”, de Edmond Rostand. É, ainda agora, uma das minhas relíquias.

Assisti a quantas peças teatrais pude, escrevi algumas, participei de discussões, de debates, de aprendizado. Até cheguei a ganhar um prêmio com uma peça de minha autoria, “O dia em que Ava Gardner morreu”. E quando nosso amigo especial, Francarlos Reis, decidiu abandonar a diplomacia para dedicar-se ao teatro, fui um dos primeiros a entusiasmá-lo naquela decisão radicalíssima. Logo depois, Francarlos se tornava um nome altamente respeitável na área teatral.

A cada peça que Francarlos estreava, ele me mandava convites especiais para estar na platéia. E, depois, íamos jantar, geralmente no “Gigetto”, onde, mal entrávamos, o garçom já nos servia chope e caipirinha. Atravessávamos as madrugadas. Ao amanhecer,  íamos tomar sopa de cebola no Ceagesp. Depois, eu retornava para a terra amada. Através de Francarlos, conheci grandes nomes do teatro brasileiro e seria fastidioso enumerá-los.

No entanto, houve uma última noite, sem que eu soubesse seria a derradeira. Quando da estréia de “A Cabra ou Quem é Sylvia?” – de Edward Albee e dirigida por Jô Soares – lá me telefonou Francarlos Reis. Os ingressos já estavam reservados na bilheteria. Empolgado, lá me fui ainda outra vez. E assisti a  um espetáculo inesquecível, de altíssima tensão, de interpretações impecáveis de José Wilker e de Francarlos Reis. No camarim, abracei os atores e resolvemos jantar no restaurante “La Luna”.

Estávamos lá José Wilker, Francarlos Reis, José Renato, Marco Caruso, numa conversa em que me enriqueci de maravilhas. Wilker estava mais doce do que nunca, pois – apesar de rudes papéis que interpretou  em novelas – era um homem todo feito de doçuras, de uma educação refinada. O velho José Renato era reverenciado; Marcos Caruso parecia beber das palavras de seus amigos; Francarlos com sua irreverência congênita. E eu, apenas ouvindo, aprendendo, tomando um verdadeiro banho de civilização e de cultura, num tempo em que Piracicaba começava a optar pela mediocridade.

Retornei em estado de graça. E animado, pois eles me entusiasmaram a escrever uma peça para o próprio Francarlos, um monólogo. Na viagem de retorno, eu já tinha a peça na cabeça e o título: “Ela é eu.” Comecei a escrever, enviava-lhes o texto, eles opinavam. Até que um dia, veio a notícia: Francarlos havia morrido. Minha peça morreu  com ele. José Renato também morreu. E, agora, lá se foi José Wilker. Que Deus mantenha Marcos Caruso vivo e brilhante. Quanto a mim, a vida já me brindou com alegrias imorredouras. Aquele jantar foi uma delas. Bom dia.

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