Um longínquo Dia das Bruxas

Na verdade, não se falava em Dia das Bruxas. Muito menos, em Halloween, herança de povos pagãos, influência celta, importada pelos anglo-saxônicos. Mas, como se sabe, a vida era mais serena, a escola risonha e franca. Foi naquele dia 31 de outubro de 1954, uma Primavera especialíssima na explosão de vida de plantas, bichos e pessoas, que, garotos, estávamos fascinados, vendo as meninas “quadrando jardim”.

As noites, nas ruas centrais, eram uma festa permanente. Na Praça José Bonifácio, as moças andavam em círculos, no sentido anti-horário. E havia um código silencioso que ninguém sentia ser preconceituoso, mas que era: no primeiro círculo, “quadravam” as estudantes; no segundo, as comerciárias; no círculo central, no mesmo sentido, as moças que trabalhavam na fábrica de tecidos, domésticas. Onde está, hoje, o Banco Itaú, ficava a “calçadinha de ouro”, por onde iam e vinham as moças de famílias mais bem postas financeiramente. Elas fingiam comprar balas na Bombonnière do Passarela, quase ao lado do Cine Politeama. Mas elas e os namorados se escondiam no pequenino interior da confeitaria e ninguém sabia o que Cupido permitia acontecesse. Para completar, o quadrado – formado pelas ruas Governador, Moraes Barros, São José e rua da Praça – era o espaço dos negros. E falava-se não haver preconceito… Falava-se. Na realidade, porém, era branco pra lá, negro pra cá…

Naquele 31 de outubro de 1954, minha turma se preparava para a formatura de ginásio, no Colégio Dom Bosco. Éramos pouco mais do que adolescentes. Aos 14 anos, eu olhava a menina passar, o coração trêmulo. Ela me olhava, sorria; eu a olhava, respirava fundo, arfando. Se fosse dia de quermesse, seria mais fácil: bastaria enviar um “correio elegante”, bilhetinho insinuador ou declaradamente apaixonado. Mas era quase véspera de dois dias de muito respeito, de muito temor, de muita reverência: o de Todos os Santos e o de Finados. Não se devia namorar, nem flertar, nem ter o coração aos saltos de emoção apaixonada. Mas quem respeitava?

Penso em Dicão, garoto mais novo que eu, da família Soares, meu vizinho. Onde está o Dicão, por onde andará? Fortaleci-me de coragem, fui até o Bar Giocondo, quase ao lado da Brasserie, pedi um pedaço de papel e lápis, escrevi um bilhetinho. Sei que a letra saiu trêmula, nem me lembro o que escrevi. Pedi ao Dicão o favor de entregar à menina que passava, a “de blusa branca, saia florida”. Ele me disse que o faria, desde que eu lhe desse uma gorjeta. Meu amiguinho, Dicão era esperto, sem timidez. Reagi e lhe prometi uns cascudos se não entregasse o bilhete à menininha linda. E lá se foi ele. Vi quando ela parou, recebeu o pedaço papel. A garota enrubesceu. Passou por mim, fez um sinal afirmativo com a cabeça, olhos brilhantes, sorriso que se tornara tímido.

Em outro ponto do jardim, um amigo, o Zé Carlos, tivera a mesma paixão alucinante por outra menina. A do meu bilhete se chamava Mariana; a menina a quem o Zé Carlos propusera um encontro dos mais ingênuos, era Marina. Os dois casaizinhos começamos a namorar naquele dia 31 de outubro de 1954. Há, portanto, 55 anos. Casamo-nos, tivemos filhos. A menininha de Zé Carlos ficou com ele. A minha me deu filhos e se foi para sempre. Bom dia.

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