Um por-de-sol inesquecível

Foto: Lancenet.com.br

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Na despedida do Neymar – no jogo Santos e Flamengo, em Brasília – duas imagens da televisão me tocaram mais fundo. Abro, porém, um parêntese: continuo fascinado por futebol, engenho e arte, uma questão, para mim,  muito mais sociológica do que esportiva. Fecho o parêntese e vou em frente.

A primeira imagem: as lágrimas do menino Neymar. A reação mundial – obviamente, por parte do “novo jornalismo”, apenas de impacto e sem humanismo – foi absurda. Lá estava um garoto famoso, rico, amado, celebridade mundial chorando. Onde já se viu um homem chorar? Era o que parecia revelar o espanto dos tais comunicadores. E Neymar, ainda jovenzinho mas humano, mostrava esse dom inigualável do ser humano: a capacidade de chorar. Homem chora, sim. E, quando chora, consegue estremecer o mundo.

Há uma frase da qual não me esqueço: “Ai do homem que não chora. Ele não merece os olhos que tem.” Lá estava, pois, Neymar derramando lágrimas, emocionado diante de tantas pressões e de tantas conquistas em uma vida ainda tão curta. Ele via chegar ao fim uma brilhante aventura de adolescente, de jovenzinho mal saído de suas próprias indecisões. E partia – ele tinha consciência disso – para a aventura definitiva de sua vida. Ao som do Hino Nacional, lágrimas escorrendo-lhe dos olhos, quantos filmes vívidos não lhe passaram pela cabeça? Neymar foi digno dos olhos que tem. Sua humanidade foi bela.

Outra imagem: o por-do-sol em Brasília. As câmeras de televisão captaram um dos mais belos e cotidianos espetáculos da natureza, espetáculo gratuito, doação diária, mensagem permanente, de cores e cambiantes inigualáveis. Penso naquela frase das lágrimas, e consigo ampliá-las: “O homem que não vê a beleza não é digno dos olhos que tem.” Ou como  já está, milenarmente, nos livros sábios e sagrados: “ter olhos de ver, ouvidos de ouvir.” Que pena, essa nossa anestesia diante do belo e a hipnose pelo feio e ruim.

A minha verdade, no entanto, é que aquele por-de-sol  remeteu-me a um outro, que me marcou indelevelmente a vida. Foi em 1959, lá mesmo, em Brasília. Outro parêntese: na realidade, o Sol não se põe; a Terra e os homens é que se põem diante dele. Como uma reverência, como uma despedida, com a esperança de que possamos estar vivos para, na manhã seguinte, vê-lo de novo.  Quando falamos que o Sol se põe, que o Sol nasceu, estamos revelando, inconscientemente, a estupidez de nosso individualismo, como se a Terra fosse plana e o universo girasse em torno de nós. Ora, se a Terra – para os irrefletidos – é o centro do universo, por que, então, cada homem não pode ser o centro da Terra? Cada um vendo o seu umbigo fica mais fácil e cômodo do que se reconhecer uma poeira de estrelas. Fecho de novo outro parêntese e, outra vez, sigo em frente.

Pois bem. Naquele ano de 1959, tomado de um fervor cívico vulcânico decidi ir a Brasília ainda em construção, um desejo obsessivo. Era o sonho de minha geração e eu queria, pelo menos, poder dizer a meus netos, quando os tivesse, que pelo menos um tijolo eu colocara na construção daquela epopéia liderada por Juscelino. E lá me fui como ajudante de caminhoneiro, do Ronaldo Gerdes, irmão de meu cunhado René. As estradas, em sua grande maioria, eram de terra, de barro molhado.  A miséria, vista na longa marcha, era desesperadora. Meninas à beira das estradas, prostituindo-se. Mulheres idosas, também. A fome, visível, palpável, dolorosa. A falta de higiene, de alimentos, de civilização. Banhávamo-nos em rios e riachos. Comíamos em palhoças à margem do caminho. Naqueles dias, entendi a indignação e a revolta que, muitos anos antes, tomara o coração de Luís Carlos Prestes em sua grande marcha pelo Brasil e que lhe mudou a vida.

Levava-se uma semana para chegar, outra, para voltar. Então, certo entardecer – eu já me sentia sem forças, minado pela viagem exaustiva – o caminhão começou a subir uma íngreme ladeira, poeirenta. O Ronaldo me olhava sem nada dizer. Em meio ao pó e ao lusco fusco, eu apenas parecia enxergar sombras. De repente, no alto da ladeira, o deslumbramento: chegáramos ao Planalto e, vista do alto, lá estava, finalmente, Brasília, toda ela ainda em construção, um formigueiro humano ao entardecer. E, como pano de fundo, no  horizonte, o mais deslumbrante por-de-sol – chamemo-lo poeticamente assim – que eu jamais vira. Era o mesmo que revi, nas imagens da despedida do Neymar.

Ainda hoje, retenho aquelas imagens nas pupilas da alma. Agora, porém, com amargura. Pois, com minhas mãos de jovenzinho, consegui construir meio metro de parede daquele que se tornou o Hotel Nacional. Senti-me, aos 19 anos,  herói, patriota, brasileiro orgulhoso e inflado de esperanças. Lá estava, eu, candango, também construtor da “Capital da Esperança”, como a denominara o notável pensador francês, André Malraux. Quem poderia imaginar que aquela Brasília, aquele sonho, aquele céu, aquele poente fossem se transformar nessa Sodoma ou Gomorra políticas e morais?

Lembrei-me de tudo, diante daqueles imagens do entardecer de Brasília na despedida do Neymar. E, estranhamente, sinto – junto a tanta amargura – latejar um coração compassado que ainda aguarda em compasso binário: “Capital da Esperança, Capital da Esperança”.  Tomara meus netos ou bisnetos possam constatar a veracidade da profecia de Dom Bosco, que teve a visão do que aconteceria naquela região brasileira: “Lugar  onde escorrerá o leite e o mel.” Por enquanto, para poucos. Por que não, algum dia, para todo um povo? Bom dia.

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