Um povo e seus dois santos

Se e quando nossas crianças ouvirem, de pais e professores, a fascinante história de nossa terra, os referenciais de vida serão outros que não o oportunismo e os interesses mesquinhos destes tempos. A história piracicabana se inicia pelo plantio de raízes que se fincaram em terra fértil e generosa. E que teve, desde os primórdios, lutas sem fim, disputas, competições, como aqueles antigos e mitológicos brutamontes que lutavam entre si pela mulher amada. Piracicaba foi a terra amada, desejada. E tão desejada e amada que não seus amantes não conseguiram dividi-la com estranhos e aventureiros.

São aventuras, contos de fada, lutas, à beira do rio e ao som dos urros do Salto, que, com suas pedras milenares, se tornou espectador privilegiado, suas águas levando a história para os confins do país. É uma história feita, também, de lendas, de contos contados ao pé do fogo e do fogão, com superstições, crenças e crendices e, acima de tudo, diante da prodigalidade de uma natureza que nos abençoou desde o primeiro momento em que os pioneiros desceram de suas canoas.

Somos, na verdade, uma grande tribo formada por diversas pequenas tribos. Por isso, os que aqui chegam não conseguem, em seus primeiros tempos, entender algumas singularidades que fazem, da gente piracicabana, um povo com características diferenciadas. Veja-se hoje, 1º de agosto, data do aniversário de Piracicaba. Não é feriado. E, no entanto, há dois dias especiais para comemorar e celebrar os oragos, os santos protetores, aqueles que, desde o início, foram motivo de devoções em disputa: Santo Antônio e Nossa Senhora dos Prazeres.

Piracicaba começou à margem direita do rio. Quando a povoação se transferiu para a margem esquerda, a semente permaneceu no lugar onde, por primeiro, foi plantada. Por isso, somos, na realidade, duas cidades em uma só: a da margem direita, a pujante e gloriosa Vila Rezende; a da direita, para onde o povoador levou a sua tribo. E perceba-se como a história prossegue sem sobressaltos e sem divisões: na margem direita, ficou o templo de Nossa Senhora dos Prazeres; na esquerda, instalou-se o espaço de devoção de Santo Antônio.

Ora, quase mais ninguém acredita em bruxas. Mas elas existem. Por muitos e muitos anos, especialmente depois da Revolução de 1930, falou-se que uma caveira de burro havia sido enterrada em Piracicaba. Parecia haver azar, olho gordo, mandingas, como se as maldições da Inhala Seca continuassem vindo lá do Bongue. Foram poucos, no entanto, os que se lembraram de que, muito antes disso, houve a mágoa de Nossa Senhora dos Prazeres, que foi preterida por Antônio Correa Barbosa, o Povoador, em favor de Santo Antônio. A lenda conta que os índios chegaram a vê-la indos-se embora, levada pelos anjos, despedindo-se na curva do rio e prognosticando: “Esta nunca será uma cidade grande.” Bendita Nossa Senhora, que impediu nos tornássemos uma cidade grande, inchada, para nos dar sabedoria de construir uma grande cidade.

Hoje, há paz entre os santos. Santo Antônio, na margem esquerda, Nossa Senhora, na margem direita, contemplam a jóia que a mão piracicabana esculpiu, um tesouro que as águas do rio levam para ser contado até nas profundezas do mar. Somos um povo com dois santos protetores. E isso são graças especiais. Que eles protejam o povo, no dia do aniversário da cidade e quando muitos desconhecem ou fingem desconhecer a grande história e o formidável destino de nossa terra. Bom dia.

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