Uma certa madama…
Há algum tempo, um de nossos muitos jovens e novatos jornalistas escreveu que determinada propriedade de Piracicaba fora adquirida, por seu novo dono, a uma “certa madame com nome francês”. Lamuriei-me, ainda outra vez, diante da perda de memória e da própria história, pela quase absoluta falta de transição entre gerações, o esfacelamento de uma herança que não foi e não tem sido transmitida. Ora, quase me canso de escrever sobre isso, mas o fato é que tradição – o “traditio” latino – é transmissão, herança, transferência. Quando há elos vinculantes, uma geração transmite a outra valores, história, memória que se vão sucedendo. Sem transição, há o abrupto, o rompimento, a perda de tesouros.
Aconteceu em minha vida uma das muitas bênçãos: apenas pude tornar-me escritor e jornalista em virtude das heranças culturais que recebi. Embriaguei-me de deslumbramento ao ouvir conversas, histórias, lembranças de Mário Neme, Thales de Andrade, Leandro Guerrini e Jaçanã Altair, Jacob Diehl Neto, João Chiarini, tantos outros, incluindo meu pai, com sua paixão por Piracicaba. Com eles, aprendi a amar esta terra, justamente por passar a conhecê-la. E sejamos honestos: ninguém ama aquilo que não conhece. Se as novas gerações não conhecerem Piracicaba – como já está ocorrendo – não poderão amá-la. E, com políticos e homens públicos, pior ainda: como servir àquilo que se não conhece?
Aquela “certa madame com nome francês” – a que o jornalista novato se referiu – era Madame Balbaud, a primeira dama da “Societé Sucrérie Bresilienne”, empresa então proprietária do Engenho Central que é um dos símbolos de Piracicaba. Essa “certa madame” era mulher do dr.Jean Balbaud, presidente da grande empresa, um casal francês que se tornou símbolo do que, naqueles anos, Piracicaba teve de refinamento, de ousadia, até mesmo de quebra de velhos tabus e conceitos sociais.
Os verdadeiros “anos dourados” aconteceram, na verdade, em meados dos 1950. Piracicaba entrara em ebulição, com o expansionismo promovido por Mário Dedini, pelos Morganti, por empresários que perceberam os sinais dos tempos, a epopéia brasileira da “Era JK”. Enquanto Luciano Guidotti fazia a revolução urbana de Piracicaba, produzia-se, na “Sucrérie”, o famoso licor “Napoléon” e a grande novidade: o uísque “Park Lane”, que pretendia ser o melhor feito no Brasil. O dr. Jean Balbaud era figura central de todas as atividades, e aquela “certa madame de nome francês” , sua mulher, ditava regras sociais, produzindo rebuliços e causando “frissons”.
Madame Balbaud foi uma das mais controvertidas, polêmicas e admiradas damas de Piracicaba naqueles tempos, ousada nas atitudes e desafiadora nos atos. E Piracicaba – mesmo nos ditos “anos dourados”, de rebeliões e de enfrentamentos – era ainda tímida, com profundas marcas moralistas e moralizantes. Madame Balbaud era a civilização francesa em Piracicaba, como se ela nos antecipasse o mundo existencialista que Sartre e Simone de Beauvoir anunciavam e propunham. Piracicaba rompeu a casca do ovo e se revelou, mesmo que com timidez, uma cidade de grandes amores, paixões, contravenções, mas com requintes e anúncios de um novo tempo. Madame Balbaud, Bice Morganti, a coluna social de Mauro Pereira Vianna, a paixão pelos jogos de tênis, o surgimento do Clube de Campo, tudo fervilhava e a cidade se viu obrigada a renovar-se, a enfrentar novos modelos e a assumi-los.
Como jornalista, tive o privilégio de transitar por tais áreas, de ouvir e de ver. Não me esqueço das reuniões na Chácara Nazareth, aos sábados, quando João Pacheco e Chaves recebia poucos amigos. A minha última conversa com a notável dona Ruth – Ruth Lang Pacheco e Chaves – mulher dele, girou em torno de uma Piracicaba de que ela sentia falta, guardiã que se tornara do patrimônio cultural e histórico dos Pacheco e Chaves. Dona Ruth sentia a ausência de pessoas de seu universo seleto, dos ingleses da Fábrica Boyes e, sua saudade especial, de Madame Balbaud.
Ora, se nós – os que já nos vamos afastando do cotidiano – não contarmos essa história aos que chegam, em quê se transformará essa já perigosa Piracicaba que se anuncia, a dos coreanos? Não há povo e nem espaços que sobrevivam matando a sua memória, menosprezando a sua história. Quando um jovem jornalista transforma uma das mais significativas personalidades de seu tempo em apenas “uma certa madame com nome francês”, a morte está anunciada. Bom dia.