Uma triste primavera

Esse texto foi publicado em 28 de setembro de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Não dei conta da chegada da primavera. Como, se as flores estão morrendo e as árvores secam? Cadê a beleza das cores? Vejo-as tão tímidas que me parece um privilégio encontrar rosas em botão, galhos floridos.

Ainda ontem, havia, em meu jarro rosas fechadas. Assustei-me, pela manhã, quando as vi abertas, imensas como girassóis. As crianças me explicaram: os botões haviam murchado e foram elas que os substituíram por rosas roubadas de um quintal abandonado. Será que as flores vicejam mais livremente sem os cuidados humanos? E a primavera, não estaria, ela, então, nascendo à distância dos olhos civilizados, empoeirados do cimento das calçadas?

Não me dei conta de sua chegada, pois as estações tornaram-se tão confusas quanto o próprio ser humano. Tão apalermadas como nós próprios, chorando quando se deve rir, rindo quando se é para chorar. Seriam, as lágrimas a chuva particular de cada homem? Se for, seria, então, a chuva, lágrimas do céu? Eu chovo, tu choves, ele chove… Não compreendo mais nada. Só sei que se chovemos é porque os parafusos se soltaram na engrenagem universal. O que há de mais hibernal do que o verão? Depois, um outono primaveril. E a primavera outonal. Num mesmo dia, o sol esturrica, a noite enregela. Os frutos nascem antes das folhas e das flores. E estas desmaiam antes de darem à luz, antes de parirem os frutos.

Nem mais os passarinhos sabem o que buscam, na dúvida entre pipilar e gemer, voar e se esconderem. No alto da janela do meu quarto, em Piracicaba, as avezinhas formaram um ninho generoso. Antes mesmo de o sol nascer, quando a claridade é simples bruxuleio, elas me acordam, cantando. De repente, porém, se calam. Ora é o vento que as atemoriza, ora a chuva que as amedronta. Eu, então, torno a adormecer, não sabendo se a noite tornou-se dia, se o dia já surgiu da noite.

Essa, pois, não é a primavera que esperei. A de dias claros e diáfanos, de ares perfumados das jabuticabeiras polvilhadas de florezinhas brancas. Primavera de manhãs sorridentes em que as pessoas se cumprimentariam com leveza de espírito e serenidade de alma. Não pode ser primavera, se os homens continuam andando cabisbaixos e ensimesmados, com pena de si mesmos. Melancolia é para inverno. Verão, no máximo. Primavera é: namorados de mãos dadas, mocinhas com blusas leves e de mangas curtas, rapazes de peito aberto ao vento da manhã, chão atapetado de flores, atmosfera aromatizada, céu limpo, noites inquietas de risadas, a plena, enfim, harmonia de Deus aspergida nos espaços.

Nada disso ainda vi. Nenhum desses aromas senti. Nem ouvi qualquer desses sons. Não me dei conta, portanto, de que a primavera chegou. Para mim ainda é Inverno. Frio e lúgubre. Inquieto e trevoso. Mas eu me compreendo: a saudade nunca foi sentimento primaveril. Bom dia.

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