Uma vaca no quintal

Esse texto foi publicado originalmente em outubro de 1988 no semanário impresso A Província. Republicamos para marcar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

Uma vaca entrou no quintal da minha casa. E eu estou confuso por causa da vaca. Vi quando ela entrou. Imprevidente que sou, esqueci-me de fechar o portão para que os ladrões, os assaltantes, os sequestradores – toda essa gente que passou a ter mais importância o que tem – não entrassem. E quem entrou foi a vaca.

Vi quando ela entrou. Era uma vaca linda, gorda, de andar pesado e lento, de úberes imensos, tetas que pareciam escorrer leite, um ventre enorme. Vi-a entrar em minha casa, pelo portão da frente, como se fosse íntima. Cocei a cabeça: ia dar confusão.

Afinal de contas, nem mesmo os bandidos ousam atravessar o portão de minha casa. Encontro-os quase todos dias à beira do lago, o enorme lago que fica prateado em noites de lua cheia. Aqueles bandidos gostam de fumar maconha à beira do lago e eu gosto de fumar meu cigarrinho no mesmo lugar.

Mas eu, à beira daquele lago, uso de minha imaginação e de minhas fantasias para usar de energias estimulantes e repousar com narcóticos de sonhos. Eles não sabem quem eu sou, eu não sei quem são eles. Ora, eles sabem onde moro, aquele casarão branco e grande diante do qual eles passam.

Não se atrevem, os bandidos, a ultrapassar meu portão, pois há um código de honra a ser respeitado. O fato é que, apesar de todas as diferenças culturais, eu e os bandidos nos entendemos. Há um código, sinto e sei que há.

Vaca, porém, não tem qualquer código, qualquer reconhecimento, tácito ou forma. E a vaca entrou no meu quintal, pela porta da frente. Percebi que me traria problemas, que me causaria confusão. Trouxe e causou. Se fosse um bandido entrando em casa, haveria alarmes, fios, armas, armadilhas. Mas era uma vaca, como se enfrenta uma vaca no quintal?

Uma vaca é uma vaca é uma vaca – agora entendo o que Gertrude Stein queria dizer com “uma rosa é uma rosa é uma rosa”. Vi quando a vaca atravessou o portão, e ela tinha razão de entrar: o portão estava aberto. As vacas entendem esse sinal de fraternidade, esse convite à visitação.

Esse mundo das vacas não tem limites, não tem fronteiras. Somente os bandidos invadem. As vacas pensam que são donas do mundo. E foi o que aquela vaca pensou e fez: comeu azaléias, margaridas, bicos-de-papagaio, folhas de abacate, comeu o pouco de grama que sobrou após tanta seca.

Os seres humanos de minha casa gritavam – “há uma vaca no jardim, uma vaca no quintal!”. E eu fiquei confuso, ainda estou confuso. Se fosse um bandido no quintal, haveria a polícia a ser chamadas, eu teria armas, defesas para enfrenta-lo. Mas os bandidos e eu temos um código e nos entendemos. Uma vaca, porém, é diferente. Como agir com uma vaca no quintal? E se ela resolver entrar no meu quarto, dormir em minha cama? Diverti-me. Mas as pessoas gritavam. Fiquei confuso. Bom dia.

 

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