Uma vitória gloriosa
Foi em 1987, talvez em 1988, quando ganhei meu primeiro computador. Um presente de meus filhos no Dia dos Pais. Era um mostrengo. Nem me lembro mais o nome da máquina, tampouco como funcionava. Tinha apenas um programa que, para ser ativado, precisava de um disco enorme. Parecia um caixote. E, no entanto, amedrontou-me.
Em 1992, finalmente, cedi, vencendo o receio, compreendendo a maquininha que, na verdade, era estúpida. Essa descoberta – da burrice da máquina – foi o que me estimulou e o que, ainda hoje, me anima, especialmente quando surgem novos e outros programas, novos e outros equipamentos. Na verdade, poderia dizer que foi, mais ou menos, como a primeira vez com mulher. Há medos, receios e, depois, se acostuma. E gosta.
Essa minha experiência, todavia, comecei a vivê-la lá pelos meus 10 anos de idade, experiência diante de burrices, quero dizer. Preciso reportar-me a dois professores, ao Juciê e ao Acácio, aos quais, de quando em quando, me refiro. Juciê lecionava Português e Acácio, Matemática. Mais à frente, falo do professor Benedicto Cotrim, mestre amado.
O fato é que, desde criança, fui dominado pela curiosidade, pela vontade de aprender. Devo-o a meus pais e, em especial, à minha irmã Marlene, a Leninha, quase dez anos mais velha do que eu, que me despertava admiração pelas coisas que fazia e sabia. Éramos pobres, muito pobres e a tragédia de morte de irmãos nos acompanhava. Cresci ao som do piano de Leninha, do violino de meu pai, ouvindo o cantarolar e vendo as pinturas de minha mãe. Começo a contar e me emociono. Por isso, paro por aqui e retorno à curiosidade infantil, meu desejo insaciável de querer saber das coisas. Na verdade, eu as sentia e, por isso, mais do que saber, eu queria senti-las mais e mais.
Hoje, sei que havia paixão e razão dentro de meu peito infantil. Então, o Juciê e o Acácio aconteceram-me na vida. Eram austeros. E, de minha casa, eu levava o aprendizado libertador que incendiava a imaginação, a procura, a inconformação. Juciê e Acácio, percebi-o de pronto, eram professores formais, diria que prisioneiros de suas próprias regras. Mas eram meus professores e, além de respeitá-los, eu devia e queria admirá-los. Não deu.
Pois, com Juciê, aconteceu a maldita “partícula se”, aquela velha história do “vendem-se casas”, nunca o “vende-se casas”. Ele explicava e ninguém entendia. E, um dia, numa prova oral, ele me questionou, eu não soube responder e Juciê me chamou de burro. Para mim, burro era ele. Mas a realidade estava lá, incontestável: eu não sabia lidar com a famigerada “partícula se”. Foi, então, que pedi para Fina – a moça que se tornou nossa irmã, depois nossa segunda mãe – que me acordasse às 3 horas da madrugada. Eu iria estudar, nem que morresse de estudar, para aprender o funcionamento do maldito “se”. Aprendi e fiquei feliz: a partir dali, eu poderia dizer que burro era o Juciê, não mais eu.
Depois, foi o Teorema de Pitágoras, com o Acácio. Ele explicava, explicava, poucos entendiam, eu entre os que ouviam e não aprendiam. E fui uma das vítimas do Acácio, numa outra prova oral. Nada respondi, nada falei. E o horroroso homem – depois, meu amigo, por isso desejo esteja sua alma em paz – me deu o castigo terrível: copiar cem vezes o enunciado do também maldito Teorema de Pitágoras. Copei, copiei, estudei, aprendi, desaprendi, não entendi para que servia, mas aprendi outra coisa importante: o Acácio mandava aluno copiar o teorema porque ele próprio não sabia, era um burro. E fiquei feliz.
Um dia, apareceu-nos na sala de aula um homem magro, de testa larga, feições sérias mas sorriso generoso. Era o professor Benedicto Antônio Cotrim. Ele era um lingüista, latinista emérito, de humanismo profundo. E fora indicado para substituir, temporariamente, um outro professor de matemática. Pois, com o Cotrim, aprendemos tudo. Ele ensinava com o coração. E, então, comecei a entender paixão e razão. A paixão é ilógica, mas com ela se aprende. A razão se diz lógica, mas não ensina nada.
Passei a conviver com o computador quando me convenci de que ele é burro, que ele se limita à razão com que foi determinado e programado. O computador é Juciê, é Acácio. E eu escolhi o exemplo de Cotrim, não me desviei do caos criativo de minha família, de minha infância. Sobre o computador, minha vitória foi gloriosa. Eu invento, ele obedece. Está dando certo. E bom dia.