Viagem de retorno

Admito, por mim mesmo, estar referindo-me, com freqüência, à viagem de volta. Mas é inevitável: queira-se ou não, faz-se o retorno. E não posso sequer queixar-me disso. Pois eu fora prevenido, um sábio me alertara.

Eram-me, então, momentos penosos da vida. Cansado, vi a família sofrendo por lutas inglórias minhas. Desisti e decidi ir-me embora, mudando-me daqui. Quis colocar um ponto final. E lá me vi, eu, dando adeus a Piracicaba. Foi quando recebi a visita de Luiz José de Mesquita, uma das mais fascinantes personalidades que enriqueceu nossa cidade, talvez a mais exuberante cultura daqueles tempos, jurista emérito. Uma das coroas de louro do dr.Luiz José de Mesquita fora o de ser nomeado tradutor oficial da encíclica “Mater et Magistra”, um dos monumentais documentos da Igreja logo ao Concílio Ecumênico Vaticano II. Tradutor e comentarista daquele documento pontifício fundamental, eis um pouco da dimensão admirável do dr.Mesquita.

Ele, na humildade dos sábios, ficou esperando-me na varanda de minha casa, estando eu em prisão domiciliar, enquanto aguardava alguns políticos saíssem. Não me esqueço da cena: seus olhos permaneceram fixos nas flores, a surrada pasta de trabalho presa entre os joelhos. Já entardecia quando sentamos para conversar. E ele, humilde, hesitava em como falar-me, não tendo certeza se deveria dizer-mo. Quando rompeu o silêncio, era uma súplica o que ele me fazia. E, surpreendendo-me, ele suplicava por mim mesmo, pelo meu bem. “Não faça isso. Não cometa o erro que eu cometi.” – dizia-me ele, naquele entardecer que se tornou sereno.

O dr.Mesquita – cuja ausência é vazio que não se preencheu – dizia de sua própria história, de sua vida, de uma experiência pessoal que lhe fora dolorosa. Ele deixara sua cidade natal ainda na mocidade. E, envelhecendo, expunha-me uma de suas certezas: a vida permanece onde se viveu a infância e a juventude. Podemo-nos ir, podemos sair, fugir e procurar – mas o umbigo permanece onde foi enterrado. E, onde estiver o umbigo, está a vida. Fica-se onde ficaram os mortos queridos. Para esse lugar, sempre se volta. Como se volta à infância, à juventude. Viver é ir e voltar.

O dr.Mesquita, tentando convencer-me, contava-me de seu retorno à cidade natal e, então, da angústia de procurar e de não encontrar. Onde estavam os lugares da infância, da mocidade; e as pessoas? Onde está o jardim? E o banco onde se sentou com a primeira namorada? E a esquina onde se trocaram os primeiros beijos? E aquela árvore onde, escondido ou por molecagem, se fez xixi? E a casa onde se nasceu? E os quintais da meninice?

O velho e precioso amigo dizia-me de sua inútil e dolorida viagem de volta à terra natal. Ele não encontrara o que deixara e nem o que perdera. E, querendo poupar-me, falou-me: “Ao fim da vida, todos fazemos a viagem de volta. Não apenas para onde nascemos, mas a volta para nós mesmos.” E completou: “Você, inevitavelmente, fará essa viagem. Mas faça-a aqui onde nasceu. Veja os lugares que o tempo muda. Mas não espere ver quando voltar, pois o lugar poderá estar perdido.”

Tentei ir, fui, não consegui ficar. Agora, ando por aí vendo e olhando o que sobrou. Ainda há bancos de jardins onde namorei, janelas sob as quais fiz serestas, árvores em cuja sombra descansei. No lugar onde nasci, consigo fazer a viagem de volta, de retorno para mim mesmo, a busca do que perdi ou do que ficou escondido em algum lugar. Reler, rever, reencontrar. Ou apenas relembrar. E, então, contar, a sina e a alegria de, enfim, ser contador de histórias. Devo-o ao dr.Mesquita. E bom dia.

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