Vida alheia escancarada

Vida alheiaParece ter, na televisão, um programa ou novela referindo-se à vida alheia. Essa minha suposição não deve significar, ao leitor, esteja, eu, alheio à tevê. Alheei-me, sim, da televisão aberta, cujos programas, quase todos eles, são de tal mau gosto e com tanta grosserias que eu passei a alinhar-me entre os que começam olhar com preocupação a liberdade da tevê para a licenciosidade. Infelizmente, a população se esqueceu ou não sabe que rádios e tevês são concessões do governo a particulares. OU seja: concessões do povo que, portanto, tem o direito de exigir qualidade, respeito, dignificação dos meios de comunicação em sua relação com o ouvinte e espectador. Exigir qualidade e estabelecer limites não significa censurar, num momento em que se confunde liberdade com desregramento total.

Mas, na realidade, estou querendo dizer da vida alheia em outra dimensão, no seu escancaramento quase absoluto, na renúncia à privacidade, na filosofia da falta de pudor que parece estar ganhando cada vez mais adeptos. Vejam bem: alguns países ocidentais estão bravíssimos porque mulheres orientais usam a burca, o véu que as cobre. Algumas o fazem por escolha, outras por obrigação a partir de uma ordem cultural ou religiosa. Ninguém, no entanto, embravece com o desnudamento total de corpos, com a erotização patológica que domina o mundo ocidental, canais de televisão, revistas, o desfile de nudez e do despudor nas ruas, nos clubes, nas casas. Protesta-se contra o excesso de pudor, dá-se de ombros à falta deles.

O que mais me impressiona, porém e nos últimos tempos, é o escancaramento da vida alheia a partir dos telefones celulares. Ora, reafirmo o meu recolhimento num mundo pessoal, mas sou atento e com faro jornalístico quando saio às ruas ou preciso frequentar alguns ambientes. Aliás, com velhos amigos, temos conversado muito sobre isso: apenas nos vemos em farmácias, ambulatórios, consultórios médicos, hospitais, velórios, cemitérios. E, de vez em quando, em horários estratégicos em supermercados.

Espanto-me, insisto, com o desnudamento das pessoas, com a falta de pudor, com a banalização do sagrado da privacidade nesses ambientes públicos quando do uso de celulares. As coisas se repetem em todos os ambientes: pessoas falam tudo ao telefone, xingam-se, revelam coisas de negócios e de família, fazem propostas amorosas, como se ninguém ouvisse o que dizem aos telefones celulares. Há poucos dias, entrei no consultório médico, cumprimentei as seis pessoas que lá estavam, incluindo a recepcionista. Um que outro respondeu com resmungo. Ninguém me olhou nos olhos. Então, a cena desenrolou-se.

A recepcionista atendia os telefonemas de pacientes, falava com seu marido no telefone celular, voltava a atender outros, ligava para filhos, amigos, sei lá para mais quem. Uma senhora, quase aos berros, discutia com a cabeleireira da filha para apressar o penteado pois, logo mais à noite, haveria um concurso estudantil de beleza. Uma outra brigava com o marido, que se esquecera de pagar a conta da luz. Um homem, empreiteiro de obras, comprava telhas numa empresa, dizendo o nome de um poderoso cliente para quem ele precisava oferecer o melhor, mesmo que mais caro. Em seguida, ligou para o depósito de tijolos, fazendo a cotação do milheiro. Daí, o outro celular do cidadão tocou, era a mulher dele, bravíssima, porque não conseguia resolver, sozinha, o problema do filho na auto-escola.

Num supermercado, o jovem homem – comprando tomates ao meu lado – conversava com a amante convidando-a a se encontrar na tarde seguinte, quando ele estaria sozinho, a mulher viajando, sabendo, também, que o marido da parceira clandestina estaria ausente. Marcaram o encontro no shopping e, de lá, iriam para um motel na estrada. Quando desligou o telefone, olhou para mim, deu um sorriso como se eu tivesse sido cúmplice de seu acerto. Fingi não ver, como fingi não ouvir. Minha conclusão: a vida alheia está tão escancarada, vulgarizada, tornada pública, que perdeu a graça. Até fazer fofoca perdeu o encanto. Bom dia.

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