Vida pública, vida privada

4d2725a1648cddced8720555fe8606f4d87bcc0eHaveria, ainda, alguém que negasse estarmos em tempos promíscuos? Um dos significados de promiscuidade é o da mistura, da confusão, da indefinição. Com ela, alteram-se costumes, hábitos e até mesmo estruturas sociais. E se perdem, também, noções de interesse geral e particular, de público e de privado. Na promiscuidade, não se sabe mais o que é correto e incorreto. Não seria isso o que, atualmente, está ocorrendo?

A discussão provocada por alguns dos chamados “ídolos da música popular brasileira” – entre eles, Roberto carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento – a respeito da publicação de biografias, suscita novas reflexões. Pois a confusão – também ou especialmente na ordem moral – beira o absurdo. A questão: a biografia de alguém deve ou não ser autorizada? Prevalece a liberdade de expressão ou a liberdade à vida privada? E mais: pessoas públicas têm vida privada?

Confesso não me alinhar entre aqueles que acreditam em liberdade plena, incluindo a da expressão. A liberdade humana é limitada, como os seus próprios direitos. O povo tem essa consciência quando diz: “seu direito termina onde começa o meu.”  A liberdade – incluindo a de expressão – implica a existência de sua irmã gêmea, a responsabilidade. Ter responsabilidade é saber pesar as coisas, quantificá-las e qualificá-las. Assim, no exercício da liberdade de expressão, há que se pesar, que se considerar se é ético divulgar aquilo que viria em prejuízo de um inocente ou de uma comunidade. Liberdade verdadeira, integral, penso eu, é apenas a de pensamento. Posso pensar o que quiser. Mas nem sempre posso expressar o que pensei.

O problema se agrava diante da promiscuidade que deteriorou valores e até mesmo princípios. Vimos caminhando às tontas, desordenadamente, em conflitos que se agravam. Até nas mínimas coisas – nas relações humanas – ficamos confusos, mesmo diante de algumas certezas antigas. Admito que já acontece comigo, pois ando em dúvida se devo atender a regras antigas de civilidade – correndo o risco de ser visto como ser estranho, retrógrado – ou se permito que a onda me leve.

Uma questão simples que antigamente não causava dúvidas, mas que, agora, causa: devo ceder meu lugar a uma mulher num espaço público? Ora, antes o homem se levantava para a mulher – especialmente a grávida ou a idosa – sentar-se em sua cadeira. Hoje, se o fizer, corre o risco de ser chamado de machista ou de estar fazendo assédio. Já aconteceu comigo no metrô, em São Paulo. No vagão lotado, a mulher grávida entrou, ergui-me, cedi-lhe meu lugar. E ela me olhou com desprezo: “O senhor pensa que gravidez é doença?”

Com a internet, com as chamadas redes sociais, com Facebook e congêneres, com os espiões eletrônicos, como podemos falar, ainda, em privacidade, em vida privada? A era digital permite que, apenas com uma compra por meios eletrônicos, meu perfil de consumidor, minhas preferências, estilo de vida, hábitos sejam desenhados pelos espiões eletrônicos.  Com os satélites – e até mesmo com o Google Maps com Street View – localiza-se até o homem que tentou retornar à caverna. E o “Sorria, você está sendo filmado?”

Políticos já descobriram – mesmo antes da era digital – que o público é deles, tomando posse também do privado alheio. O povo – em grande número – também está perdendo a noção das diferenças entre público e privado. Faz-se, por exemplo, em plena rua, o que, antes, se fazia em recintos fechados. O público, na verdade, deveria ser considerado mais nobre, já que se refere a todos. Assim, não se pode fazer, em lugares públicos, o que se faz na própria casa. Mas isso também acabou.

Estou, na realidade, querendo dizer que não saberei me posicionar diante dessa discussão provocada por “ídolos” da nossa música popular. Como discutir direitos em conflito, se já perdemos a noção deles? Ou se a temos e isso é inútil? Bom dia.

3 comentários

  1. Luiz Miquilini Ferraz de Arruda em 18/10/2013 às 23:42

    Para tudo que é nego torto, um dia surge, entre as nuvens, um enorme zepelim… “idolos” a vida pública é continuação da privada.

  2. Delza Frare Chamma em 26/10/2013 às 09:38

    Muito gostosa de ler esta crônica, pois numa linguagem de humor, inteligente, deixa o registro da confusão de valores e princípios perante a tal modernidade. Algumas poucas coisas, porém, continuam muito claras para mim a esse respeito: – censura nunca mais! Censura prévia é censura. Biografias são pedaços de História onde se entrelaçam momentos de grande importância com pessoas interessantes que se entrecruzam ao biografado, também ele, uma pessoa pública e portanto biografável. Perderíamos o direito de ler a biografia de uma Clarice Lispector, por exemplo? O biografado se sentiu difamado moralmente? Use os meios legais perante a Justiça que os mesmos existem e pronto, resolve-se a celeuma.

  3. Roberto Antonio Cêra em 27/10/2013 às 15:01

    Caro Cecílio, não sei o quanto a jogadora de basquete Paula pode ter interferido no livro biográfico, que você escreveu sobre ela. Só sei que, no dia dos autógrafos, lá estava ela, toda satisfeita e feliz, também dando seus autógrafos, inclusive para mim. Seu sucesso era tanto, que acabou saindo correndo do Shopping, para fugir dos fãs. Acredito que ela não teria nada de grave para esconder. Agora, esse pessoal da MPB deve ter muito. Inclusive hipocrisia…

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