Vida sem desperdício

Não mais tenho tanta certeza. Mas, deve ou deverá acontecer, por estes dias, o quinto aniversário da morte de Lazinho Capellari, líder de São Pedro, ex-prefeito, o último coronel de uma política decente e dignificante que conheci. É incrível, mas não consigo esquecer-me desse homem, amizade que me marcou fundo e que me é, ainda agora, um testemunho vivo de que é possível haver política como missão e serviço ao povo.

Lembro-me de, à época, confessar não ter suportado ficar no velório de Lazinho. Era uma manhã fria, cinzenta, chuvosa e, vendo outro mundo acabar, senti que mundos se acabam mais tristemente em dias nublados e gélidos. Chovia miudinho e eu não conseguia saber se era de meus olhos e do coração, se do céu, que chovia. Tive a sensação de que todas as coisas e sentimentos estavam recolhidos num mosteiro sob as nuvens. Na verdade, era a certeza de, com a morte de Lazinho, ter sido outro mundo que terminava, o mundo da dignidade da política e do homem público. O tempo e os acontecimentos posteriores deram-me razão. E é amargo constatar que apenas as heranças más parecem ser transmitidas.

Ora, já entendi, há alguns anos, esse inevitável fim de mundos, dos mundos. Não são finais apocalípticos, com trombetas e terrores físicos. Mundos e pessoas se acabam devagarinho, indo-se aos poucos, como acontece também agora, com o mundo horrendo do capitalismo selvagem já posto em velório. Quando mal se percebe, lá se foram os mundos, lá nos fomos nós, lá se vai um tempo. Que dão espaço e oportunidade a outros. Deve ser esse, talvez, o sentido do eterno retorno.

Quando se diz nada haver de novo sob o Sol, a repetição das coisas mostra ser admirável a sabedoria dos anciãos. No entanto, para quem fica, tudo parece o mesmo, mas não é. Há ausências, há perdas, há faltas. E, quando se procura, não se encontra. Volto a lembrar da pergunta infantil que se torna filosófica com a idade avançada: “Cadê o toucinho daqui? O gato comeu. Cadê o gato?”

Guardam-se, no peito, opressões que se avolumam. Quando Chico Buarque fala de “um pote cheio de mágoa”, acredito seja mais um jarro de ausências, de tristezas e de amarguras. É como se a alma humana fosse uma daqueles jarros de barro dentro do qual se vão deixando pregos, moedinhas, cartas, bolas de gude, piões,. Ou um livro antigo entre cujas páginas se guardam pétalas de rosas secas, uma foto de namorada, um bilhete de amor ou de despedida. Quando o pote se quebra, tudo se esparrama. E sai pelos olhos, em forma de lágrimas. Ou em soluços contidos na garganta.

Pensando no quinto aniversário da morte de Lazinho Capellari, lembrei-me também de que me recusei a despedir-me dele. Agora, entendo: eu não queria despedir-me de mim mesmo, pois era, aquele homem bem mais idoso do que eu, um dos pilares do mundo em que vivi. Há algo de perturbador nisso: quanto mais só se está, mais se tem a consciência de ter ficado. Sem pessoas e valores e cultura de mundos que se acabam, o homem nem sequer fica. Sobra.

No entanto, há algo mais importante nesses desmoronamentos e perdas de mundos: o sobrevivente não tem o direito de lamuriar-se do que se foi, do que acabou. Pelo contrário, a sua responsabilidade aumenta. Pois é ele que deverá dar de si para a continuação da história. Sobreviventes não podem desperdiçar a vida com inutilidades. Mundos se acabam para que outros surjam. Quem já viu o passado tem o dever de contribuir para, mais sabiamente, construir o agora. Bom dia.

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