Vidas secretas

Dia chegará em que, menos interessados na intimidade das pessoas, deixaremos de discutir a respeito da moralidade de vida pública e vida privada. O tema é fascinante e, desde gregos e romanos, fervem os neurônios de pensadores. Inutilmente, aliás. Pois a vida continua a atropelar conceitos, leis, regras, em nome de paixões, amores, no clamor da sexualidade que fala mais alto. Afinal de contas, nenhum ser vivo existiria sem sexo e estômago. São duas fomes dilacerantes.

Essa grande farsa do Fernando Henrique, agora posta a nu e em pratos quase limpos, faz lembrar a sabedoria do velho Ulisses Guimarães – de quem, aliás, Fernando Henrique se dizia aprendiz – quando dizia, quase babando, que “política é o mais forte afrodisíaco.” Na verdade, é o poder. Seja ele qual for: político, ideológico, econômico. Basta um mínimo de poder para a libido de quem o adquire se tornar mais acesa. Sei lá qual a natureza do fenômeno, mas é assim.

Mais sábios e honestos, portanto, seríamos se, em vez de vidas privada e pública, falássemos da vida secreta dos homens do poder, em especial políticos. Sob a moralidade cristã, no conceito da monogamia e dos valores de família, a natureza humana fica sob severa fiscalização. E a libido em especial. Políticos, líderes, governantes sabem que sua vida pessoal está sob fiscalização ou observação. E que nem tudo o que é aceitável num homem do povo pode ser adequado ao homem público. Este tem resposnabilidades outras, especialmente se eleito por voto popular, quando se transforma em representante de pessoas, que, como representadas, exigem seja honrado o voto de confiança que deram, a delegação, a procuração. E como fazer, se o poder é afrodisíaco quase insuportável, espaço de fascínios, de tentações, de facilidades, da luxúria e da gula?

Homens sábios, com grande prestigio e responsabilidade, souberam viver suas vidas secretas, nessa que é, sim, uma hipocrisia da civilização, mas necessária. Penso nos diários de Getúlio Vargas. Duvido que muitas pessoas os tenham lido, dois volumes maçudos, mais de mil páginas cada um. Fiz questão, quando foi tornada pública a obra, de lê-la de princípio a fim. E, no descrever de cada um de seus milhares de dias na presidência da República, Getúlio Vargas deixava transparecer a sua emoção de adolescente ao narrar ou aguardar cada encontro com o seu amor clandestino, a mulher de sua vida, Aimée, dolorosamente mulher casada com um dos seus mais fiéis amigos. Getúlio e Aimée, foi como se a vida se resumisse apenas a eles dois. Para preservar a identidade entre vida pública e vida privada, Getúlio Vargas viveu a vida secreta.

E secreta também foi uma parte da vida do austero, do celibatário, do guardião da moral e ditador de Portugal, Oliveira Salazar. De público, era o mais puritano dos homens. Na vida privada, o que se conhecia dele eram a austeridade, a simplicidade, a ascese. Mas havia uma vida secreta, revelada apenas após a sua morte, de paixões fulminantes, de ardores voluptuosos. Como secreta também foi a vida da Rainha Victória, a mais puritana de todas as governantes, mas apaixonada e vivendo amor ardente com um subalterno.

Vida secreta teve-a, também, o socialista François Miterrand. E como, quase sempre, vida secreta significa vida dupla, mesmo quando o segredo transpira ele é preservado por poucos que o conhecem. Foi assim com Juscelino Kubitschek, grande e notório amante; com John Kennedy e sua paixão por Marilyn Monroe, romance que poderia ter deslumbrado o mundo, em vez de escandalizá-lo, se houvesse sido divulgado. Quem não acompanharia, com encantamento, cada escapada de John Kennedy para o leito de Marilyn?

Essa história de Fernando Henrique é carregada de sordidez pelo fato de, já sendo conhecida, ter sido ocultada pela imprensa, numa conivência medíocre com a farsa. Dona Ruth Cardoso, coitada, sabia da traição e da infidelidade, retraindo-se magoada e ferida. Ela manteve a dignidade, enquanto Fernando Henrique alimentou a farsa, criou jeitinhos, teve cúmplices no governo e entre poderosos. Agora, quando a farsa se desfaz, uma verdade nova por fim aparece: não havia um casal Fernando Henrique Cardoso. Não foi Dona Ruth que se casou com Fernando Henrique. A história é mais simples: foi Fernando Henrique que se casou com a mulher admirável que foi Ruth Cardoso. O mais da história estava nela. Ele, vaidoso, não teve sabedoria sequer para viver uma vida secreta. Como galã de opereta, se vangloriou da conquista e, depois, precisou tentar consertar o estrago.

O chato, a partir de agora, vai ser se, quando ele falar ou escrever, alguém dar um basta: “Ora, cara. Vá falar e escrever pras suas negas.” E bom dia.

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