Vivaldi e o carro da faxineira

Tornei-me um homem absolutamente dependente de prestadores de serviços. A escolha de morar sozinho – minha mulher na casa dela, eu na minha, encontrando-nos de 6ª.feira a domingo – é gratificante, mas tem seu preço. Que, para mim – quando se trata de coisas do cotidiano – é muito alto. Pois sou um incapaz em questões práticas. Absolutamente incapaz. Só sei fazer pipoca. E no microondas. Estou proibido até de lavar um copo, pois quebro o que me chega às mãos.

A minha salvação é a maravilhosa pessoa humana, mulher admirável que – mais do que prestar serviços em minha casa – é a verdadeira governanta. Faz tudo e de tudo. Lava, passa, cozinha, limpa, cuida do jardim, atende recados, faz compras e já a vi trocando lâmpadas, arrumando torneira. Quando é preciso, ela mesma chama o eletricista, o encanador, o Dunga que, além de consertar máquina de lavar roupa e geladeira, é outro faz tudo. Sem essa digníssima senhora, fico aleijado, perdido, desnorteado, imobilizado. Só não passo fome por ela deixar tudo prontinho para os fins de semana.

Desespero-me quando ela tira férias. Tenho vontade de cair de joelhos e implorar que não me deixe. Mas ela tem seus outros afazeres e os sagrados direitos de cidadã. Pois bem. Na ausência dela, pedi que me encontrassem alguém que, pelo menos, fizesse a limpeza da casa, cuidasse da roupa, essas coisas. Minha mulher cuidou disso e, um belo dia, um belo automóvel encostou à frente de minha casa. Dele, desceu uma jovem mulher – de seus 35 anos – toda maquilada, elegante, simpática. Surpreso com a visita inesperada, nem tive tempo de perguntar de quem se tratava, meus olhos fixos no belo automóvel. Ela logo se apresentou: “Sou a nova faxineira de que o senhor precisa.”

Pensei no Lula, o promotor da ascensão da Classe C, nossa nova classe média. E descobri, então, que eu nutria preconceitos horríveis. Pois não consegui admitir que uma faxineira pudesse vir trabalhar com um carro tão vistoso, tão elegantemente vestida. E ela era, mesmo, uma trabalhadora doméstica, eficiente e eficaz, orgulhosa de sua profissão. Chateei-me ao sentir que meus preconceitos aguçaram-se, já que eu não me sentia à vontade de vê-la esfregando o chão, lavando e passando roupa, fazendo limpeza. Eu olhava para o carro dela e via o pobrezinho do meu automóvel. Dentro de mim, surgiu uma convicção: eu é que deveria ser o faxineiro e ela, a madame. O Brasil é outro. Basta acreditar.

E isso me lembra de algo que já contei. Tive uma jovem doméstica que fazia a limpeza da casa, ajudante da cozinheira. Era quase analfabeta, modos grosseiros, mas honesta e eficiente. Ela quase não falava. E eu, em meu canto de trabalho, escrevendo ao som de meus clássicos que fazem fundo aos meus vôos de pensamento. Nunca pensei se a moça sequer percebia o som que se espalhava pela casa, pelo jardim, música dos grandes mestres.

Ela era noiva e o rapaz se tornou meu amigo. Certo dia, com meu carro na oficina, pedi-lhe uma carona, quando ele veio buscar a noiva e faxineira. Ao entrar no automóvel, ouvi os sons das “Quatro Estações” de Vivaldi. Entusiasmei-me, ainda que surpreso já que, por meus preconceitos, eles deveriam gostar de ouvir as tais músicas sertanejas que, de sertanejas, nada têm. Perguntei se era rádio ou CD. O rapaz me informou: “É CD. Estamos colecionando músicas clássicas. Ela (a noiva e faxineira) gosta tanto do que ouve na casa do senhor que começamos também a ouvir música clássica.” Enfim,entendi que cultura, arte, refinamento podem atingir a população por osmose.

Uma certeza, essa eu a tenho: os meios de comunicação, todos eles, estão errados quando oferecem lixo cultural ao povo, como se pessoas humildes fossem idiotas ou brutas. Razão tinha o Joãosinho Trinta: “Povo gosta de luxo. Intelectual é que gosta de lixo.” É isso aí. E bom dia.

1 comentário

  1. MARLENE em 27/09/2012 às 20:35

    ACHEI INTERESSANTE ESSA HISTÓRIA REAL ,POR QUE NEM SEMPRE AS POSSOAS SÃO O QUE OS NOSSOS OLHOS NOS MOSTRAM, MAS SIM O QUE EXISTE DENTRO DELAS PRÓPRIAS.

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