Vocação de vira-lata

O sempre lembrado Nelson Rodrigues dizia que os brasileiros temos complexo de vira-lata. Começo a acreditar seja mais do que isso. Pois, para certos grupos sociais brasileiros – incluindo intelectuais, círculos da imprensa e setores empresariais – são claros os indícios de haver, mais do que complexo, uma vocação de vira-lata, para vira-lata. E lembremo-nos que, figuradamente, vira-lata é aquele que não tem estirpe, sem classe.

Lembro-me de quando fui atraído pelos acontecimentos mundiais. Foi naquele fatídico 9 de agosto de 1945, quando o mundo ficou paralisado aguardando a segunda explosão atômica, anunciada para acontecer em Nagazáki. Eu tinha apenas cinco anos e vi, na bilheteria do antigo Cinema Broadway, filas imensas de jovens namorados, indiferentes, como se nada estivesse acontecendo ou fosse acontecer. Previa-se o fim do mundo. Hiroshima deixara a humanidade com medo pânico. Uma segunda bomba destruiria o mundo, era o que se temia. E eu, com apenas cinco anos, fiquei aguardando o mundo acabar. Na verdade, se não foi destruído pela bomba, aquele mundo acabou. Era um outro mundo.

Em 1950, com a Guerra da Coréia, passei a ler os jornais, orientado por meu pai, que me explicava mais aquela tragédia sobre a humanidade. Aos meus 10 anos, pois, eu já me acostumara à destruição e me tornara leitor voraz. Em 1954, o suicídio de Getúlio Vargas me apanhou apalermado diante de tanta fúria na política, diante de tantos ódios. Eu tinha 14 anos e comecei a namorar o comunismo nos grêmios estudantis, promessa que nos faziam de construção de um novo mundo. E, de novo, era um outro mundo aquele pós-Getúlio, o mundo da Cortina de Ferro. Em 1956, eu já estava trabalhando em jornal, aos meus 16 anos.

Então, Juscelino Kubitschek empolgava o Brasil e a construção de Brasília se tornou o elo de união nacional, o despertar de um novo tempo, o orgulho que brotava de veias e de corações. Lembro-me, orgulhosamente, de, na boléia de um caminhão, ter ido a Brasília, para erguer, com minhas mãos, pelo menos meia parede de tijolos. E consegui. No entanto, os mesmos que tinham tentado o poder em 1946, que mataram Getúlio em 1954, lá estavam tentando destruir Juscelino e o sonho de um Brasil novo, pujante, aquele Brasil que foi capa de “construir 50 anos em 5.” Não conseguiram derrubar JK, mas chegaram ao poder com o golpe militar de 1964. Posso dizer: “meninos, eu vi.”

Ora, ainda estes dias, dei minha frágil opinião a um velho e querido amigo: “Tenta-se fazer com Lula o que se fez com Getúlio, com Juscelino, com Jango.” São as mesmas forças, os mesmos núcleos, os mesmos grupos que, embora se renovem com pessoas, mantêm vivos os ranços, a cólera, os ódios aristocráticos, o espírito de senhores do engenho, ainda acreditando que a casa grande tenha poderes absolutistas sobre a senzala.

É, sim, um Brasil novo que está surgindo, uma nação que começa a agigantar-se, libertando-se de correntes e de atrasos. São pequenos grupos – aboletados em setores da imprensa, da indústria, do comércio, da agricultura – insistindo em manter privilégios e recusando-se a abrir mão de suas capitanias hereditárias. É odioso e antinacional tentar interromper essa nova caminhada ou trabalhar para que não aconteça o Brasil que começa a confirmar a profecia feita há algumas décadas: “Quando o Brasil abrir os olhos, estremecerá a América Latina; quando respirar, moverá o mundo.” Já abrimos os olhos e estamos despertos e respirando.

O povo brasileiro não aceita mais ser o vira-lata da história e rodrigueano. Por isso mesmo, está atropelando os que, em grupos aristocráticos, querem manter viva a sua própria vocação de e para ser vira-lata. Será absurdo mantermo-nos cegos e surdos diante do novo Brasil e do clamor que se espalha pelo mundo: Brasil, nova potência mundial neste século 21. E mais absurdo, ainda, é não perceber que as novas potências que surgem – Índia,China, Rússia – são de culturas orientais, de civilizações diferentes das ocidentais. É o Brasil a nova ponta de lança do Ocidente, somos nós, brasileiros, os obreiros desse novo mundo que extrapolou a pequenez de uma mal intencionada globalização apenas econômica. Transformar esses amplos horizontes numa medíocre questiúncula eleitoral, pró ou contra Lula, é lutar contra a história.

Vejo esse filme de misérias, de tragédias, de mesquinhezes há longos 53 anos de jornalismo. Nunca gostei dele e não quero vê-lo mais. Sei que, agora, é outro o filme. Mais do que apenas assistir, quero participar. O filme dos vira-latas acabou. Bom dia.

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