Vontade de pai

Amigo querido, um velho frade franciscano – que, tão recentemente, nos deixou – costumava dizer de suas emoções de confessor ao ministrar a unção dos enfermos. Contava-nos, comovido, que, no leito de morte, a última palavra – se ainda pudessem balbuciar – que as pessoas falavam – ou por quem clamavam – era: “Mãe”. E que, quanto mais idosos, a saudade delas, em sua agonia final, parecia mais sofrida e ardente.

Penso nisso, hoje, por causa do Dia dos Pais. Sei ter sido presente dos céus ou privilégio da vida – ou ambos – continuar, ainda agora, associando as duas figuras, tendo-as como inseparáveis: pai e mãe. Se penso em um, imediatamente surge o outro. Eram diferenças que se completavam. E, como conseqüência, nos completavam também, a nós, os filhos. Ela risonha, extrovertida, festeira, pintora; ele, introvertido, apenas sorrindo como se evitasse rir, sereno, violinista. As almas deles pareciam encontrar-se nas telas da pintora e nos sons melodiosos do músico.

Penso no meu velho amigo franciscano porque me é quase absurdo constatar que, quanto mais ando dentro do tempo – agora, do outono para o inverno – mais a imagem de meu pai me acalenta a alma, tornando mais suaves as lembranças. Penso nele, minha mãe também aparece. E ele chega-lhe ao lado quando, nele, penso. Isso é diário, parte do meu cotidiano. Mesmo porque, em minha sala – onde deixei meu baú de recordações e da história familiar – as fotografias deles me iluminam, como se ali permanecessem.

Mais incrível, ainda, é sentir essa saudade aguda, agridoce – entre balsâmica e dolorosa – de meu pai. Aquelas mãos enormes e mansas, os imensos olhos azuis, o corpo atlético, o sorriso bondoso, o menear de cabeça a cada sensação de consolo ou desconsolo, a palavra sábia, a generosidade para com todos, os abraços e beijos que ele nos dava, o companheiro em que me transformou, tornando-se mestre e mentor. Não era meu amigo, que amigos eu os tive sempre em todos os tempos da vida. Era mais do que isso: ele era meu pai. A pessoa amada e o lugar de conforto e de repouso, o meu espaço de retorno e de segurança.

Ele – cujo ofício de juventude fora de carpinteiro e marceneiro, interrompendo os estudos de odontologia pela perda de um dedo – fazia os meus brinquedos de madeira, incluindo os presentes de Natal. Nadador emérito e remador, ele me levava ao rio amado – o então vigoroso, valente, ao mesmo tempo manso e furioso rio Piracicaba – para me ensinar a nadar. Eu subia no trampolim, olhava para baixo, lá estava meu pai entusiasmando-me e garantindo-me: “Salta, filho. Eu estou aqui para o segurar. Pode saltar, não tem perigo.” E eu saltava, caindo-lhe nos braços musculosos, agarrando-me ao seu pescoço, seguro por suas mãos. E, então, ele ria e me beijava e me abraçava. Aprendi, naqueles saltos, a mergulhar em precipícios da vida. A confiar, a não temer, a arriscar, a sair do casulo, a enfrentar. Ah! braços e mãos de meu pai.

Maravilhosamente, ele era, ao mesmo tempo, um homem contemplativo e de ação. Em seus momentos de fúria – ai de quem ousasse falar mal do “Nhô Quim” ou de seu fordeco antigo – ele se tornava um tigre amedrontador. Mas era, quase todo o tempo, um homem doce, como um velho beduíno que, em areias do deserto, entende a vida a partir do infinito dos céus iluminados e dos horizontes sem fim. Os primeiros livros, foi ele quem mos deu para ler. E os primeiros chutes em bola de futebol. E as primeiras insinuações sobre o amor entre homem e mulher.

Sem brigar, sem bater, sem gritar, ele impunha sua autoridade paterna com seriedade e brincadeiras. Para fingir braveza, ele entronizou – numa das paredes da sala de jantar – um rabo de tatu. Quando filhos e netos se altercavam, quando as discussões ficavam mais acesas, ele batia o garfo no copo, pedindo silêncio e mostrava o rabo de tatu: “Quem quer receber a primeira lição?”

Essa minha vontade agoniada de pai, essa saudade de pai me tornam novamente criança. Não sei se isso é bom, se é ruim. Mas me deixam quentura no coração que me sabe a mel e vinagre. Sou eu que o chamo de volta ou é ele – como no rio e no trampolim – está pedindo eu saltar, superar a barreira, que não tem perigo? Não sei. Mas saudade dói, nessa vontade intensa de outra vez. Bom Dia dos Pais para todos. Descobri não haver órfãos no mundo: pais não morrem.

(O autor publicou esta crônica no Correio Popular, de Campinas, no dia 10/08/2012.)

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