XV, honra e vergonha

Em 1949 – há 60 anos passados – acompanhei meu pai, nos meus então encantados 9 anos de idade, no imenso, no quase impossível desafio de, em poucos meses, o E.C.XV de Novembro construir um estádio conforme as exigências da Federação Paulista de Futebol. O XV tinha sido o primeiro campeão da Lei do Acesso, que levaria o nosso clube piracicabano a disputar o Campeonato Paulista de Futebol ao lado de gigantes como o Corinthians, o São Paulo, o Palmeiras, a Portuguesa Desportos, alguns outros.

Voltando à epopéia de 1949. Foi a máxima honraria esportiva. No pequenino e humilde estádio da Rua Regente Feijó – onde Roberto Dedini cometeu o estupro de transformar em supermercado, crime que nunca deixará de lhe pesar na alma – estava toda a também ainda pequenina Piracicaba.

O antigo Estádio do XV resultou de uma convocação geral. Ao entardecer, homens, mulheres, crianças, idosos iam ao humilde Estádio atendendo à convocação do Prefeito Luiz Dias Gonzaga: “construir”, conforme a Federação exigia, o Estádio do XV. E construímo-lo, repetindo a mais desafiadora das leis, a de Winston Churchill, que venceu a guerra convocando o povo a lutar com “sangue, suor, lágrimas e trabalho.” O XV nasceu disso. E, ao se tornar “Nhô Quim”, em 1950, passou a ser a consagração de um povo, de uma história, de uma epopéia.

Ainda hoje, nas raras vezes que vou ao supermercado da Rua Regente Feijó – uma empresa que, visivelmente, se transforma em depósito – consigo ouvir gemidos e urros e prantos, gritos de alegria e de esperança, sentindo na pele suores e, no coração, palpitações agônicas. Vejo e sinto e me agonio com o XV da Rua Regente Feijó. E sei que, na maldição que Roberto Dedini atraiu para Piracicaba, no piso daquele supermercado, há o sangue, o suor, o sangue, o trabalho da gente piracicabana; o sangue e suor de Gatão, Ary, de Elias e Idiarte, de Pedro Cardoso e Armando, de Adolfinho, de Sato e Picolino, de Rabeca, de Pepino, de De Sordi, da nossa brava gente piracicabana.

O XV é um patrimônio e o Nhô Quim, uma grife de valor incalculável. Piracicaba endoideceu nas últimas décadas, desde quando, acho – na minha visão, hoje, de memorialista – esse delicado e dissimulado Antônio Carlos Mendes Thame se tornou prefeito. Thame nunca jogou bola nas ruas, menino mimado que não sentiu suor do povo, sangue no chão, a paixão explodindo nas arquibancadas e gerais, aguardando se realizasse toda uma mitologia: o gol que chegaria quando a Maria Fumasse apitasse na curva da atual Avenida Armando Salles, o salto de Gatão no último minuto do segundo tempo, o sangue de Idiarte escorrendo na grama para conter o adversário.

O XV é paixão. O Nhô Quim é patrimônio.

Fui amigo e admirador de homens formidáveis, como Rocha Netto, que dizem ser historiador do XV. Ele não é isso. Rocha Netto foi um maravilhoso e admirável coletor de informações, colecionador de dados, pesquisador de números, de estatísticas, quem registrou cada partida, cada gol, cada detalhe. Seu patrimônio é imenso e me gabo de ter sido eu quem, falando com Gustavo Alvim – então vice-reitor da UNIMEP – sugeriu, brigou e conseguiu que a universidade assumisse o acervo de Rocha Netto. Mas são números, são estatísticas, um arquivo frio. Rocha Netto, um apaixonado pelo XV, nunca soube, na escrita, interpretar essa paixão que é coletiva, de um povo, das vísceras de todo nós. Ele foi e será sempre como que um escriturário e um escrevente dessa história. E tem seu valor por isso.

O XV está resistindo, cada vez mais alquebrado. E o que ainda o move é a paixão. O último verdadeiro presidente do E.C.XV de Novembro de Piracicaba foi Romeu Ítalo Rípoli. Se houver quem duvide disso, posso prová-lo. E a agonia do XV começou, paradoxalmente, com o então genro dele, Eduardo Perry, que continua solto por aí, como soltos estão tantos outros oportunistas e interesseiros. Quando Roberto Moraes, o deputado, foi, infantilmente, buscar o apoio da TAM, ele quase matou o XV, que resistiu, certamente, por protestos sobrenaturais de toda uma história. Roberto Moraes aceitou que a TAM trocasse as cores do XV, o nosso alvi-negro tornando-se tricolor, as mesmas cores do São Paulo F. C.

O XV não anda, não vai, estrebucha, luta, resiste e se recusa a morrer. Ouço dizer que, agora, Barjas Negri e o homem da Amplha, que é Secretário de Esportes do Município – relevem-me a má informação, mas um certo Pedro – pensam em assumir o XV, querendo salvá-lo. Não salvarão, como outros não o salvaram. O XV não precisa apenas de administradores, de gerentes. Precisa de amor, de paixão, de doação pessoal e coletiva. Políticos, desde o início da história do XV, têm sido oportunistas que buscaram usar o XV como instrumento eleitoral. Está no rol da história do XV. Mas esse Nhô Quim que resiste a tudo. esperando ser salvo por aqueles que, como em 1949, deram sangue, suor, lágrimas e trabalho para o transformarem em símbolo de nossa terra, de nossa história.

Quanto mais políticos houver nessa agonia, mais o XV caminhará para o colapso. A história conta e peço, por meu cansaço, não me peçam para recordá-la. Foram políticos que, sem o perceber, feriram o XV, abusando dele. É um paradoxo terrível, mas verdadeiro. Amavam o XV, mas foram em busca de popularidade com esse amor. Penso em alguns – mesmo que haja lapsos de memória em relação a outros. Eles são parte dessa morte que, mesmo anunciada, se recusa a acontecer: o próprio Luiz Dias Gonzaga, que convocou Gerolamo Ometto e, depois deste, João Guidotti, Luciano Guidotti, Bento Dias Gonzaga, Antônio Cera Sobrinho, Antônio Romano, Humberto D´Abronzo, Gustavo Alvim, Rubens Leite do Canto Braga, Roberto Moraes, e também o mesmo Romeu Ítalo Rípoli que , cedendo à vaidade, viveu a paixão política a ponto de , como se fosse uma dinastia, indicar seu genro, o ainda impune Eduar Perry, como herdeiro. Perry não honrou a luta do sogro e apunhalou o XV pelas costas. Por que ninguém se lembra disso? .

O XV é questão de honra de um povo, de uma terra. E sua redenção apenas acontecerá, acredito eu, quando tivermos, como cidade e povo, a convicção de que é vergonhoso permitirmos morra esse símbolo de nossa história. Bom dia.

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