Boicotando o mundo

A beleza salvará o mundo

Ainda pequenino, já tive vontade de consertar o mundo. Consertar de quê, nunca o soube. Na verdade – como qualquer ser humano limitado e finito – acredito ter desejado fazer o mundo “à minha imagem e semelhança.” Um mundo onde, pelo menos, o “inferno não fossem os outros”, como Sartre havia concluído.

Lá me fui, então, fazendo cavernas em porões de casas onde moramos, casinhas em cima das árvores, esconderijos para tocaiar bandidos. Brincar de mocinho e bandido era, penso eu, uma das formas de reinventar o mundo, expurgando-o – como um John Wayne infantil – de ladrões, assaltantes. Que – para se ver! – já existiam, desde, aliás, que me vi entendendo alguma coisa. Por causa de ladrões, amei Tarzan, Robin Hood, D.Quixote e, por consequência, Luiz Carlos Prestes, Guevara e Fidel. Enganar-me a mim mesmo foi, portanto, a minha grande sina, Iliada e Odisseia de um sonhador caipira.

Certa madrugada da adolescência, retornei da boêmia, com o violão nas costas, na embriaguez de rum com Coca Cola, a simbólica “Cuba Libre” que, desgraçadamente, foi outra fantasia. Ou ideal juvenil? A família dormia, mas minha mãe me esperava. Embriagado, caí no sofá com o violão nos braços e prometi à mamãezinha: “Eu vou salvar o mundo!” Ela suspirou: “Tudo bem, meu filho, mas, agora, vá dormir.” Dormi no sofá.

A vida seguiu seu inexorável caminho e, aos poucos, conheci minha fragilidade humana. Desisti, então, de consertar o mundo e resolvi consertar o Brasil. Armei-me de fúria e de palavras, mosqueteiro sem mosquete mas com máquina de escrever. Não deu certo, desisti. Mas propus-me, então, a salvar o Estado de São Paulo, tão apaixonado fui pela bandeira das treze listas. Era tanta paixão que – ainda nos meus 13 anos, em 1954 – enganei todos os adultos e, com um grupinho de amigos, fui participar dos festejos do IV Centenário. Foi quando vi estrelinhas de prata caindo do céu, coalhando o chão da cidade tão amada. Apanhei algumas das calçadas e guardei-as por muito tempo, até que as perdi. Ou delas me esqueci.

Não deu certo, ainda outra vez. Então, resolvi salvar Piracicaba. Creio haver, ainda, quem se lembre daquela tanta luta, fuzis imaginários nas pontas dos dedos, escrevinhação sem fim, enfrentamentos infindáveis. Tanto foi o cansaço e a certeza de uma luta sem sentido que também desisti. Mas abri o coração para outra batalha, tolo quixotinho caipira. Era em minha casa, com minha família. Salvá-la do mundo, proteger meus filhos como se os abrigasse sob os meus frágeis braços. Mas salvá-los do que mesmo? Descobri que, na verdade, eu apenas os preparara para irem ao encontro do mundo, vivendo suas vidas. E, como herança, deixei-lhes uma: “Filhos, o lar não é o lugar onde se fica, mas para onde se volta.” Com a alma em júbilo, vejo-os voltando, retornando, visitando-me ainda agora. Penso em Gibran e me emociono: “Seus filhos não são seus filhos, mas filhos da vida.”

Quando começo a celebrar minhas cerimônias de adeus, entendo que a grande verdade de viver é uma construção, sim, um conserto, uma reforma. Consertar-me a mim mesmo, cada vez mais lucidamente e com a eterna – e por isso mesmo infindável – paixão pela vida. Vou-me, pois, consertando-me. Mas – agora e na velhice – com uma missão a que me entreguei: a de boicotar o mundo. Não mais salvar, mas boicotar. E ficar gritando, como o menininho da lenda: “o rei está nu, o rei está nu.” Ora, todos sabem disso, mas pouquíssimos são os que têm coragem de proclamá-lo.

Comecei o boicote com uns amiguinhos no lugar onde moro. São crianças adoráveis que me cativaram, fazendo, de mim, portanto, prisioneiro delas. Elas eram companheiras, de quando em quando, de meu café da manhã. E, um que outro dia, almoçavam comigo. Para loucura da cozinheira, eles invadiam a casa e, sabendo que eu ainda dormia – trabalhador noctívago que ainda sou – batiam à porta do quarto: “Está na hora de acordar, vagabundo.” Ou sabendo que eu me banhava, apressavam-me: “Acabe com isso, está gastando muita água.”

Mas meus amiguinhos ganharam celulares e barafundas tecnológicas de seus pais. E foram, a pouco e pouco, deixando-me. Eles não saíam mais de suas casas, cada qual hipnotizado por seus jogos. Veio-me, então, uma ideia e iniciei a batalha de boicotar o mundo. Propus, aos meus amiguinhos, brincar de conversar. A princípio, eles não entenderam. Expliquei que eu lhes apresentaria um assunto, um tema. E, então, eles iriam ao doutor e professor Google pesquisar. E, após a pesquisa, iríamos conversar no jardim. E propus o primeiro tema de conversa: a beleza, o belo.

Ansiosamente, aguardo o retorno dos meus amiguinhos. Se eles voltarem para conversar, eu terei feito o primeiro exercício de boicote ao mundo: a semeadura da beleza. Na certeza de que Doistoevsky tinha razão: “O belo salvará o mundo.” Esta será a minha batalha final.

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