“In Extremis” (103) – As rosas exalam. E falam

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(Foto de Isabelle Taylor, no Pexels)

“As Rosas não falam” – do notável Cartola – é uma das belas músicas do cancioneiro popular brasileiro. Se refletirmos na maravilha de um homem tão simples produzir tal beleza, talvez viéssemos a admitir o que já nos foi contado: “Deus expira, o homem inspira.” Logo, a inspiração dos poetas e dos músicos, dos artistas e das pessoas simples, seria a capacidade de absorver a expiração divina. Se assim não for, desconheço outra explicação. Cartola soube inspirar o que – como expiração da Vida – as rosas transmitiam.

Penso nele, penso em rosas e volto a bendizer os céus pelos privilégios de, muito cedo ainda, ter inspirado maravilhas da vida. Pois, fui, também, seresteiro. E, modéstia à parte, dos bons. Eu, com minha inesquecível turma de juventude. Seresteiros e ladrões de rosas. Os jardins da cidade e das residências eram floridos. E não se concebia fazer seresta à moça amada se, à sua janela, não se lhe deixasse uma rosa. Havia romance no ar, nas noites piracicabanas daqueles “anos dourados”. Até os guardas noturnos paravam para ouvir os seresteiros, espiando se janelas iriam abrir-se; se, às escondidas, jovens entrariam nas alcovas das bem-queridas. E desejadas.

Lembro-me de, já adulto, ser assaltado por paixão arrebatadora. E nós, ela e eu, clandestinos, iríamos nos encontrar pela primeira vez. Foi em São Paulo, numa noite fria. Como ir a tão ansiado, desesperado encontro sem levar uma flor? E onde, no cimento paulistano, encontrar uma rosa para ser roubada? Vi, no Largo do Arouche, o vendedor de flores. A respiração ofegante, aproximei-me dele. Era socorro o que eu lhe pedia. Não, eu não queria comprar rosas. Para a mulher amada, há-se que colhê-las. Ou roubá-las. Mostrei, então, ao florista, a carteira com dinheiro. Eu poderia, sim, pagar por uma rosa, mas não deveria fazê-lo. Eu tinha que roubar uma delas para aquele alucinado encontro de um amor. “Eu compreendo, você está apaixonado.” – falou o homem. E me autorizou a levar quantas rosas eu quisesse. Quis apenas uma. Uma bastava. E bastou.

Cartola não o revelou, mas as rosas falam. Exalam e falam. Rosas sussurram, alegram-se, entristecem-se. No meu jardim, vivo essa abençoada aventura de conversar com plantas, com flores. Plantei cinco mudas de rosas. Passei a acompanhar o florescer delas. Vi os primeiros botões e, em seguida, abrirem-se, eles, em pétalas brancas e rosas. Mas, em certa manhã, a tristeza: formigas tinham devorado todas elas. Foi, então, que ouvi o pranto das mudas, o apelo para que eu as plantasse em outro espaço. Entendi, atendi. Plantei novamente. E tudo se repetiu após algum tempo.

Certa manhã, uma das roseiras machucadas sugeriu-me fazer o plantio num lugar mais alto, talvez em vasos. Hesitei, mesmo sabendo da sabedoria das plantas. Que morrem, renascem; murcham, rejuvenescem; que conhecem a humildade sem se negarem ao próprio esplendor. Hesitei. Dei-me um tempo, num descuido talvez irresponsável, pois, se elas faziam parte de minha vida, o mínimo que eu lhes devia eram os cuidados: quem ama cuida. E, então, vieram as chuvas, dias nublados, preguiçosos.

Resolvi, finalmente, atendê-las, escolhendo um lugarzinho privilegiado. Não podia admitir viessem a florir – então palidamente – aprisionadas a vasos. Quando, porém, fui ao encontro delas, tudo era silêncio. As roseiras tinham morrido. Nem sequer despediram-se de mim. Resta-me, agora, esperar ressuscitem, ressurjam. E, então, que me perdoem.

PS – Nestas horas tão amargas, isso é “para não falar que não falei de flores”.

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