“In Extremis” (104) – Fios de ovos e jiló

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“O individualismo nega o que somos: criaturas interdependentes. Não nos bastamos por nós mesmos. E o nome dessa interdependência é solidariedade.”(imagem de Gerd Altmann, por Pixabay)

Parece-me simples entender: quem se deliciou com a doçura dos fios de ovos não se acostuma com o amargor do jiló. Trata-se de escolha, de opção, embora haja quem se compraza com o jiló. Quanto às épocas, às eras, não há como delas fugir. Hão que ser vividas por seus contemporâneos. E a escolha, agora – quem sabe? – pode estar na criação de ninhos isolados, grupais, familiares. Seria criar novos mundos.

Ora, direis: quando se trata de tempos, de épocas, sempre se falou terem sido melhores as anteriores. Porque a alma humana – seletiva, mais sábia do que a razão – relembra, recorda, revive apenas aquilo que foi bom, belo e alegre. Tenta-se esquecer da dor, repudia-se o sofrimento. O ser humano anseia pela vida e foge à morte, buscando adiá-la o mais possível, mesmo sabendo ser seu inexorável destino.

Há alguns anos, a repórteres do meu jornal, sugeri pesquisar a respeito da saudade, de como as pessoas sentiam-na. Por intuição, propus entrevistassem crianças. E comprovou-se: crianças também sentem saudade! De um brinquedo anterior, de folguedos na calçada, saudade de amiguinhos, também de familiares. Saudade são, sempre, imorredouras lembranças do que foi bom, belo, alegre, prazeroso. E, portanto, inesquecíveis.

Sou, também, um homem saudoso. E é-me, isso, um tesouro, revelador das maravilhas que me aconteceram na vida. Não, não as quero outra vez, pois permanecem vivas em mim. Não as quero por recusar-me a congelar o passado. No entanto, é alentador ser íntimo da saudade. Sentindo-a, reconhece-se ter vivido.  E, ainda, estar vivo.

Ora, não creio tenha havido uma época com essa espetacular conquista tecnológica atual. A descoberta do fogo, a invenção da roda, o amestramento do cavalo, talvez, tenham sido tão revolucionários, transformadores. Mas a abundância tecnológica do agora é admirável, até mesmo assustadora. Ora, como não nos assustarmos quando o desconhecido se nos torna cada vez mais amplo, abismal? Creio haver a intuição coletiva de termos invadido o sagrado sem saber como conviver com ele. E, então, o medo.

Retorno, porém, aos fios de ovos. Pois não há como negar seja, essa era digital, amarga feito jiló, embora o esplendor de suas conquistas, o encantamento de suas ofertas. São tempos sem doçura, amargos, atrevo-me a dizer que desumanizados. A pérfida economia de mercado sem regras envenena as conquistas da ciência. O ser humano não pode e não consegue viver apenas em função de lucro, de levar vantagem em tudo. O individualismo nega o que somos:  criaturas interdependentes. Não nos bastamos por nós mesmos. E o nome dessa interdependência é solidariedade. Um mercado sem regras não pode ser solidário.

Ainda, pois, prefiro fios de ovos a jiló. Vivi um tempo quando as pessoas se respeitavam, em que se cultivavam a cortesia, a cordialidade, virtude que se guarda no coração. As pessoas assobiavam nas ruas que eram, também, parques infantis da criançada. Homens, com chapéus, descobriam-se diante da mulher que passava. Gestantes eram bem-aventuradas dos céus. Alunos, em respeito, punham-se de pé à entrada do mestre na sala de aula. Faziam-se orações às refeições, ao amanhecer, ao dormir. Pedia-se a bênção dos pais e estes abençoavam seus filhos. Os sinos bimbalhavam à hora da Ave Maria. Moços entoavam serestas às suas bem-amadas. Andava-se a pé, faziam-se piqueniques. E havia pobreza. Mas, nela – por atingir a quase todos – existia a solidariedade.

Sim, comia-se jiló. Mas fios de ovos espirituais adoçavam a vida.

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