“In Extremis” (111) – Ser passarinho

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(imagem de Santa3, por Pixabay)

Não sei, na verdade, se existe o que chamam de reencarnação. Mas já não mais penso muito nisso. Depois de o Papa Francisco ter dito não existir inferno, fui levado a pensar em coisas que, realmente, não mais me incomodam. Ora, se não existe inferno, também não existe purgatório.  Vai daí, se não existem nem inferno nem purgatório, como é que fica aquele “ir para o céu”? Pergunto por perguntar. Pois o que mais tento, atualmente, é viver alegremente o tempo que me resta. Sem, portanto, especular sobre o desconhecido.

Há poucos dias, porém, lembrei-me das imensas discussões – que nunca levaram a nada – sobre reencarnação. Se houvesse, o que eu escolheria ser? Como gostaria de voltar? A minha rápida, rapidíssima conclusão foi a de, no caso de uma outra vida, desejo, novamente, voltar como humano. E sendo eu mesmo. Pois, se assim fosse, eu retornaria com grande experiência evitando cometer tantas tolices. Admito, porém, ser apenas filosofice sobre hipóteses sem conclusão. Nascendo outra vez humano, certamente eu voltaria a querer ser tão poderoso quanto o Criador. Ou mais, ainda, do que Ele…

Lembrei-me, em assim pensando, de um maravilhoso texto atribuído a Jorge Luiz Borges, mas que é – pelo que dizem estudiosos – somatório de diversos outros autores. De tão belo, peço permissão para reproduzi-lo:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria em mais rios. Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveram sensata e produtivamente cada minuto da vida; claro que tive momentos de alegria. Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não sabem, disso é feito a vida: só de momentos. Não percam o agora. Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas, como sabem, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

Ora, depois disso – e, numa outra vida, querendo continuar humano – que tolo seria, eu, se ignorasse as lições do poeta? Faria tudo isso e seria menos prisioneiro de livros, de leituras, muito menos. No entanto, se for para voltar – e reencarnar – eu gostaria de ser passarinho. De preferência, sabiá. E, então, eu ficaria voando por aí, pousando no lugar que escolhesse, no galho que mais levemente balouçasse. E iria tentar fazer ninho no relógio antigo da casa daquele escritor, evitando, porém, que ele me espantasse. Mais ainda: eu beijaria flores, banhar-me-ia sob a garoa fina, cantaria o dia todo. Não precisaria trabalhar para comer, pois há, na natureza tudo o de que preciso para aproveitar o dom da vida.  Eu, então, entenderia:

Olhai as avezinhas do céu: não semeiam, nem colhem, nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. (…) Olhai os lírios do campo. Eles não trabalham, nem tecem. Contudo, nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles.

E, à noite, em paz, eu dormiria. Sem pensar no amanhã. Passarinho, eu viveria o agora. Por pouco tempo. Mas com alegria.

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