“In Extremis” (136) – Muitos amados, muitos finados

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(imagem: Zorro4, por Pixabay)

Na aventura de viver, a chatice está na morte. Ela é uma intrusa, atrevida e mal-educada. Entra na festa sem convite algum. E esse é, sem dúvida, um grande desrespeito. Mais ainda: considero seja violação de direitos humanos pessoais, pois atenta contra a minha liberdade. No entanto, essa chatice é real e tudo o que me resta – pelo menos, a mim, não sei quanto aos demais – é tentar vencê-la. Sei que a luta será perdida, mas continuar lutando é preciso. Até que, por fim, consiga – este escrevinhador – aceitar que viver é perder. Ganham-se maravilhas. No final, porém, perde-se tudo. Aventura é assim mesmo.

Fui apresentado a essa malvada ainda nos meus cinco aninhos de idade. A princípio, foi medo, a terrível sensação de que tudo iria terminar sem que, para mim, sequer tivesse começado. Muitas vezes, já contei esse pavor infantil. E, por mim, irei continuar contando-o mais e mais ainda. Foi a maldita bomba atômica cruelmente anunciada, a segunda, sobre a Nagazaki dos japoneses. Acontecera, três dias antes, sobre Hiroshima. O governo militarista de Truman, nos Estados Unidos, cometeu, sim, verdadeiro e espantoso genocídio, matando cerca de 200 mil pessoas nas duas cidades. E causando consequências que destruíram mais vidas até setenta anos depois da matança sem qualquer justificativa.

Naquele agosto de 1945 – eu completara cinco anos no mês de junho – vivi, sem nada entender, o pânico e o desespero das pessoas também aqui em Piracicaba. Todos diziam a mesma e enlouquecedora certeza: “O Mundo vai acabar!” E ninguém me explicava nada. Pelo contrário, evitavam que eu entendesse. Como, porém, não entender que “o Mundo ia acabar”? E que terrível e cruel sadismo do governo de Truman, anunciando que a segunda bomba cairia sobre Nagazaki? Lembro de estar sozinho, aguardando que tudo terminasse, na calçada de nossa casinha, quase à frente do então Cine Broadway. E minha perplexidade aumentou alucinadamente quando vi a fila de pessoas para ir ao cinema. Como era possível ver filme se tudo estava prestes a terminar? Acho que, naquele anoitecer, comecei a ficar adulto.

Mas a impiedosa morte continuou muito próxima daquela criança. No final daquele ano e início de 1946, ela devorou parte de minha família. Em menos de 30 dias, morreram um tio, minha avó – destruída pela morte do filho tão amado – e nossa irmãzinha de apenas dois anos. A pequenina Carolina, atropelada por um caminhão. Ainda penso estar ouvindo os urros desesperados de meu pai – que presenciara a tragédia – e os gritos enlouquecidos de minha mãe. E vejo pessoas entrando em nossa casa, querendo ajudar sem, no entanto, saber quê ou como fazer. Eu vi e ouvi tudo aquilo e, a partir desse dia, entendi ser, a morte, a mais terrível inimiga de quem está vivo. E, também: nunca quis saber de uma outra vida depois dessa, nem mesmo de ressurreição. Essa intrusa tentou levar-me – sei lá pra onde! – algumas vezes.  Continuo brigando para ficar por aqui “ad aeternum”. Até eu enjoar…

Ficar, ainda estou ficando. Mas quantas perdas! Quantos amados e quantos que se finaram! Avós, pais, irmãs, tios, primos, a mãe de meus filhos, uma netinha, tantos parentes, tantos amigos, generosos mestres que me deram inestimáveis lições de vida! Por isso, não gosto, jamais gostei desse “Dia dos Finados”. Afinal de contas, os nossos mortos queridos não nos saem das lembranças, estão conosco diariamente. No mistério de se criar a eternidade, eles continuam vivos em nossa saudade.

Mantê-los em nossas lembranças é vencer a intrusa que os levou.

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