“In Extremis” (148) – “…frutos da terra e o trabalho do homem”

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Teia de aranha: uma imagem representativa da “teia da vida”. Das relações de interdependência entre os seres humanos, assim como a interdependência entre nós e a natureza. (imagem: LynnWhitt / Thinkstock)

Uma milenar oração de origem judaica – assumida, também, pelos cristãos – impregnou-me, há tempos, a consciência. Sinto-a como comovente comunhão entre o divino e o humano: “Bendito sejais, Senhor do Universo, pelos frutos da terra e pelo trabalho do homem.” Nela, estão o milagre fornecido pela terra e as transformações por mãos humanas. Um pãozinho, em sua aparente simplicidade, oferece-nos a síntese desse reconhecimento. Eis a terra presenteando-nos com o trigo. E eis, com seu trabalho, o homem transformando-o em alimento: colhendo-o, debulhando espigas, industrializando-o, tornando-o massa, preparando-o, levando-o aos fornos, comercializando-o e, por fim, trazendo-o à mesa como alimento.

Nos 1990, o sociólogo italiano Domenico De Masi entusiasmou o mundo com a  percepção de estarmos ingressando na era do que ele chamou de “Ócio Criativo”. As conquistas tecnológicas haveriam de produzir tais mudanças nas relações de trabalho que os desempenhos seriam mais prazerosos e produtivos. Não se trataria do “nada fazer ou fazer menos”. E, sim, de haver mais tempo para unir trabalho, estudo e lazer. A lógica do sociólogo sempre foi irrefutável. No entanto, tal perspectiva está, ainda, longe de realizar-se. Pois esse “ter mais tempo” produziu, até aqui, mais cansaço, ansiedades, desgastes físicos e emocionais.

Eis que – no auge de uma era realmente espetacular de conquistas e descobertas – nós não conseguimos, ainda, absorver o essencial cujo nome é sabedoria de viver. Como que tolamente, substituímo-la pelo que chamamos de “arte de sobreviver”. Que, na realidade, nada mais tem sido do que uma guerra do cotidiano, confronto de individualismos, fuga ao verdadeiro significado de sociedade e, também, de comunidade. Pois há diferenças. A sociedade reflete-se naquilo que é público, do mundo. Comunidades têm vínculos físicos, materiais, emocionais, espirituais entre os seus membros. Significativamente, a origem da palavra comunidade oferece-nos dois sentidos: “communio”, comunhão; “commercium”, relação de troca, de venda.

As cidades fortalecem-se quando essas duas realidades convivem harmonicamente: o comércio, a troca; a comunhão, chamemo-la, pelo menos, de espírito de solidariedade. É o coexistir pacificamente, a busca do ideal de conviver, esse saber “viver com”. Que loucura, porém, nos atacou levando-nos à beira de um suicídio comunitário previsível? Que estupidez coletiva é a nossa, enxergando um inimigo em cada pessoa, um adversário a ser vencido numa guerra cotidiana ao fim da qual não haverá vencedores?

Dos verbos auxiliares – ser, estar, ter e haver – convenço-me precisarmos, seriamente, refletir sobre o estar. Pois, na verdade, estamos. Apenas estamos. Logo, é racional buscar saber como, onde, quando, com quem estar. Comunidade é esse “estar com”, “coexistir com”. E, se assim é, estupidez será insistirmos no conflito, na desunião, na devoção ao individualismo estéril, árido.

“Os frutos da terra e o trabalho do homem” – eis a síntese de nossa dependência permanente, mesmo quando a ignoramos. Recorro, ainda, ao aparentemente simples pãozinho. E poderia recorrer a uma fruta, ao arroz, ao leite, à cama, à faca e ao garfo – frutos da criação humana e da generosidade da terra. Neles, deve estar a nossa mais verdadeira realidade: somos dependentes uns dos outros. Logo, a sabedoria, que nos deveria animar, está na busca da interdependência consciente: ser fundamental para a sobrevivência do outro, como ele o é para a minha. Apenas isso.

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