“In Extremis” (22) – “Apesar de você, amanhã…”

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Chico Buarque. (imagem: reprodução inspirarte.art.br)

Em minha vida, a universal lição de Dostoievsky, repito-a como um mantra: “A beleza salvará o mundo.” Acredito inteiramente nisso.  A beleza cativa, encanta, dociliza. Uma flor pode silenciar canhões. E foi o que aconteceu em Portugal, quando o povo recebeu os belicosos soldados com ramos de flores. Tornou-se a “Revolução dos Cravos”. E aconteceu, também, numa noite de Natal, durante a I Guerra Mundial, quando soldados, atrás de suas trincheiras, estabeleceram uma trégua espontânea para ouvir a suavidade da “Noite Feliz”. Ora, se a beleza consegue interromper guerras, pode, sim, salvar o mundo.

Tudo depende, porém, dos corações humanos. E da sabedoria das pessoas. Alguns são treinados, modelados para matar. Outros, para cantar a vida enquanto ela existe, sabendo da inevitabilidade da morte. O filósofo e religioso ortodoxo, Jean-Yves Leloup, faz uma reflexão marcante: “A vida tem que ser vivida, mas é feita para morrer. A flor tem que colorir, mas é feita para murchar. O amor é para amar, mas é feito para passar.”

Chico Buarque canta tudo isso, o que há de mais belo e doloroso, o mais doce e o mais amargo da aventura humana. Ele é e tem sido – ao longo dos últimos quase 60 anos – o admirável gênio de toda a poética brasileira. E, agora, também reconhecido como o burilador da palavra luso-brasileira, “última flor do Lácio, inculta e bela”, como a definira Luiz de Camões, o sacerdote pagão de “Os Lusíadas”. E é exatamente o “Prêmio Camões” que Chico Buarque recebe, consagrando-se e sendo reconhecido como o inspirado artesão de nossa língua luso-brasileira. Chico, qual caravela, singra “por mares nunca d´antes navegados.” Apenas medíocres não alcançam a dimensão histórica e cultural disso.

Ora, dizem, justificando sua mediocridade: Chico é um escritor “de esquerda”, um comunista, alguém que sempre enfrentou o militarismo. Tais rótulos, o que significam eles diante da consagração histórica? O Chile celebra, ainda hoje, a grandeza de Pablo Neruda, um líder comunista sagrado e consagrado literariamente no mundo todo. Portugal derrete-se de amores por seu genial “comunista” José Saramago. Por que a maldição de aprisionar a arte à ideologia?

Digo-o como aprendiz de escritor: sinto inveja, santa inveja desse Chico com alma melódica. Ainda hoje, estou em busca de uma frase – de uma única frase – em Sol Maior. Chico Buarque – em cada verso, em cada estrofe, em cada rima – compõe uma sinfonia de palavras. Com sua poética, Chico minou os alicerces da ditadura. Sem espadas, sem canhões, sem continências. E ainda é um dos mais sensíveis porta-vozes de nossa gente. Nenhuma estupidez haverá de manchar essa epopeia nascida do esplendor do lirismo.

Lembro-me do orgulho de brasilidade que senti, certa vez, num simpósio em Santiago do Chile. Uma historiadora chilena foi ao mosteiro onde estávamos querendo conhecer o brasileiro que lá se encontrava. Ela não sabia quem identificar. Dizia, apenas, querer conversar com “o brasileiro”, buscando informações para sua tese de doutorado. O tema: “Chico Buarque, um canto de liberdade”. Estávamos, ainda, no Chile de Pinochet. E no Brasil, da ditadura militar. Chico era amado e admirado como “cantor da liberdade”. Ao lado de Mercedes Sosa, de Neruda, de Vinicius, de Violeta Parra, Victor Jara, Garcia Marquez, Vandré, Caetano – e tantos sonhadores.

Chico Buarque não precisa de quem o defenda. Lá atrás, quando tentaram amordaçá-lo, ele prenunciou: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.” Medíocres passam, gênios imortalizam-se.

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1 comentário

  1. Rosane Aparecida Grisotto em 17/10/2019 às 18:42

    Cecílio, sempre um genio, belissima materia sobre o nosso poeta. Obrigada.
    A voce Cecílio toda admiração e repeito.
    Abs

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