“In Extremis” (240) – A criança do sonho
Sonhos, muito já os li em busca de decifrar-lhes o significado. Tentei compreender a partir de Freud e de Jung, especialmente por este. Parece-me ter sido em vão. Pelo menos, para mim. No entanto, acabei por satisfazer-me com a sabedoria de Platão: “sonho é a ação da imaginação durante o sono.” Mas e os sonhos de olhos abertos, enquanto acordado?
O fato é que sonhos podem perturbar. Enquanto outros pacificam. Tentar entendê-los seria, certamente, viajar profundamente por dentro de si mesmo. Naquele lugarzinho onde a razão não penetra. A mais desafiadora das viagens, portanto. Seja o que ou como for, a realidade está em serem, sonhos, componentes inescapáveis da verdade de cada pessoa.
Por alguns dias, um mesmo sonho me povoou. Era uma criança visitando-me ao longo de meu dormir. Linda, pouco mais do que um bebê. Estava sentadinha no nada. Ao seu entorno, paisagens encantadoras batizadas por nuvenzinhas claras. E árvores esplêndidas, uma cascata silenciosa, avezinha solitária voejando vadiamente. A criança contemplava algo que eu, curioso, não podia ver. E, então, ela voltou-se para mim e sorriu o sorriso mais generoso que nunca conheci. Um sorriso conciliador, pacífico, diria até que angélico não fosse a plena humanidade que revelava. No rosto, duas covinhas. Ralos, os cabelos como que apenas começando a estar no mundo.
Por três noites, na mesma semana, aconteceu. Tudo igual. A mesma criança, a mesma paisagem e, em mim, a mesma sensação indefinível de harmonia, de paz. E, ao despertar, também o desejo de aquela magia não mais me escapasse. Foi semelhante à de quando me deixo envolver pelo “Clair de Lune”, de Debussy. O pleno enlevo que espiritualiza. Pensei, por algum tempo, fosse uma graça capaz de transportar-me a um outro mundo. Talvez, ao “shangrilá” do Horizonte Perdido, o paraíso na Terra. No entanto, acabei por aceitar: a paz está recolhida no interior de nós mesmos.
Sei lá se realmente entendo, se desejo que o seja. Mas aquela criança do sonho passei a tê-la como um anúncio. Arrisco-me a dizer algo semelhante ao que teólogos definem como querigma. Mas não sei e não quero saber. Tudo o que desejei é que permanecessem o sentimento, a sensação, a impressão, aquele sentir. Pois tenho a ansiada esperança de, naqueles sonhos tão iguais, estar a revelação de a criança ainda viver em meu coração. O “eu criança”, especialmente numa época quando o viver se expressa através de tantos infrutíferos ódios, conflitos, competições, rivalidades. Todos, de adultos.
Já aprendi estar, a sabedoria de viver – também ou especialmente – em encontrar ou construir o seu deserto próprio. Diria que seu mosteiro, seu monastério pessoal. Pois, neles, encontra-se a solitude. E onde se hospeda apenas os que buscam viver a mesma utopia. Pois, em nossa tão conturbada civilização, esse deserto tão fértil é, realmente, utopia: “o lugar que não existe”. Mas ele está por dentro, exigindo tão só a coragem de empreender a grande viagem para encontrá-lo.
Permitir, pois, o ressurgir da criança. E, então, romper com ordens, regras, submissões, costumes, hábitos, prisões milenares. Entender que, acima do “eu devo”, está o “eu quero”. E, em querendo com prazer, reaver a liberdade para rir, chorar, xingar, protestar, rebelar-me, amar, desamar. Ver figuras nas nuvens, contar estrelas, acreditar em Papai Noel. E tomar sorvete à vontade. De limão, de maracujá. Para, por fim, brincar de ser adulto, fazendo as mesmas tolices que eles, tão bobamente, fazem. Crianças deveriam governar o mundo. A bagunça seria mais divertida.
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