“In Extremis” (26) – A morte de meu tio e o apocalipse

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(imagem: reprodução Pixabai)

Poucas, pouquíssimas vezes escrevi no período da manhã. Os neurônios – ou a alma, o espírito, sei lá – negam-se a funcionar. Aprendi, pois, serem, eles, lunáticos, noctívagos, amantes da Lua e da noite.  No entanto, aqui estou, pela manhã, instado a escrever esta crônica, acho que é crônica, também não sei.

Dei-me o direito de tal justificava por uma simples razão: estou rindo. Rindo muito. E meneando a cabeça, não consigo explicar se por inconformação se por, alegremente, sentir-me zombando de mim mesmo. Não consegui, ainda, entender e, por isso, se me torna ainda difícil explicar. Rio e rio-me de mim, como se a descoberta da tolice me fizesse feliz. “Tolo, como pude ser tão tolo?”

Confesso pouco saber a respeito de sinais, de desígnios, de avisos, de premonições, intuições, essas coisas mágicas. Mas respeito-as. Pois, como as bruxas, elas existem. Ora, sempre me impressionou a descoberta de Jung quanto à sincronicidade, as tais das coincidências significativas. Se aconteceu uma vez, não se perturbe; se aconteceu uma segunda, fique atento; se se deu pela terceira vez, pare, pense, reflita.

Eu tinha um único tio vivo, meu amado Tio Tito. Ele era o último dos quase trinta tios e tias que nos encantaram as vidas. Tio Tito tinha humildade franciscana. Para falar, ele baixava os olhos, como se não se sentisse à altura de seus interlocutores. E era de uma cultura sólida, ampla. Fomos muito próximos, homem a quem sempre recorri para informar-me da história familiar. E para aprender coisas da vida, das muitas que ele entendia, nos seus lúcidos e incríveis 94 anos.

Há poucos meses, telefonei-lhe. E recebi o choque doído, doído demais dentro de mim: Tio Tito tinha morrido. E ninguém mo dissera. Desabei emocionalmente. Se estava escondida, a minha fragilidade se me revelou por inteira. Era um vazio que eu jamais concebera. E agora? E agora? Tornei-me, para mim mesmo, uma criança indefesa, aturdida, como se abandonada no escuro. “Tio Tito morreu, e agora?” Sobre mim, senti cair-me o peso de toda uma história, da história de muitas gerações.  Tio Tito significava, em minha vida, muito mais do que eu mesmo supunha. E agora?

Não entendi ou fugi ao entendimento. E passei a sonhar com os falecidos: pai, mãe, irmãos, tios, primos, amigos, muitos amigos, a primeira netinha, a mãe de meus filhos. Eram sonhos agradáveis, quase sempre alegres. Ora, sonhos são fundamentais em nossas vidas, sim, senhores. Senti-me levado a questionamentos. E, então, há uns 15 dias, dois urubus passaram a pousar no telhado da churrasqueira. Vinham, pousavam, ficavam quietinhos. Na simbologia e no folclore, urubus – como o corvo europeu – são aves agoureiras. De bons ou de maus augúrios. Entender é preciso.  “Si non è vero, è multo bene trovato…” E agora?

Pois bem. Acordei, após sonhar com a multidão de meus mortos queridos. Incluindo Tio Tito. E surgiu-me, num relâmpago de entendimento, a grande revelação: “Acabou!” Simplesmente acabou! Estou presenciando o apocalipse de minha família, da história que me antecedeu, pois apocalipse é exatamente isso, a última revelação. Por isso, passei a rir-me de mim. Serei um idiota, absolutamente idiota se não fruir, não gozar, não saborear as delícias e maravilhas destes últimos tempos.

Meus ancestrais acabaram de ir-se. Que meus descendentes saibam caminhar. Quanto a mim… Que, ao fim, eu alcance a sabedoria de, apenas, deslumbrar-me com a vida. A morte de Tio Tito deu-me, enfim, o sentimento da liberdade plena. Agora, estou por mim. E para mim.

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