“In Extremis” (27) – Aromas, sabores, delícias de antes

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(imagem: reprodução Pixabay)

É mesmo verdade, verdade é: o adulto torna-se a criança que foi. A infância – especialmente se tiver sido harmoniosa – permanece viva em algum lugar da alma. Ou do coração. Pensa-se tenha desaparecido, mas estava, apenas, escondida. E, então, reaparece mais vívida do que se imaginava. Bastam um aroma, um cheiro, um perfume. Um sabor. Até mesmo uma simples imagem, fugidia. Através de uma paisagem que, mesmo envelhecida, revela lembranças.

Não tenho mais dúvidas: viver é carregar o passado como companheiro. O presente está apenas acontecendo, indefinido, ora feito de esperanças, ora de desânimos. E o futuro não existe, nada além de uma hipótese, uma expectativa. O futuro é o sonho que se tem. O passado, porém, é o sonho que se teve. Ou o pesadelo. Mas definitivamente enraizado nas vísceras do coração. E da alma.

Basta permitir aconteça, basta não ter medo de rever e de reviver – e a infância brota de algum lugar do infinito. Não sei se é ela que reaparece, se é o idoso que a procura. Há, porém, o encontro. O reencontro. E é plenificante, então, perceber-se intocado, guardador de tesouros que não foram violados. Trata-se de uma descoberta ou de revelação: “Eu sou eu mesmo. Ainda. Apesar de tudo.”

Quando se pensa haver endurecimento, insensibilidade, eis que as crostas vão-se derretendo, barreiras e bloqueios caem, o pesado torna-se leve. Aquilo que parecia tão importante não tem mais qualquer importância. E o que se considerara tolo, inútil, banal acaba revelando-se essencial. Um pão com ovo frito, por exemplo. De repente, surge a irresistível não sei se saudade ou vontade de comer um simples pão com ovo. Aquele feito por minha mãe e que eu levava, na lancheira de papelão, à escola.  E, então, descaradamente, sem qualquer timidez, peço à cozinheira – a rainha, a controladora de tudo – gulosamente: “Quero comer um pão com ovo!” E ela não estranha, como se acostumada com caprichos de homem velho. Ou de criança.

Já estou conseguindo entender: a vida não se esvai. A vida fica, permanece. Basta, apenas, permitir-lhe ressurgir, que se reapresente. E ela se revela tão esplêndida que emociona como se fosse a primeira vez. O aconchego está em casa, no lar que é lareira, por pequenino ou humilde seja. O cheiro do café coado logo pela manhã. O perfume realmente embriagador do feijão sendo cozido na panela. O alho e a cebola, aromas que parecem o batismo e o crisma de cada dia. A fragrância do bolo de fubá, sendo gerado no forno. O odor mágico do fogão a lenha, as pequeninas toras exalando como que o incenso da família…

Já entendi, portanto: a vida fica, como se circulasse para ser retomada quando se tem saudade daquilo com que nos presenteou. Saudade, saudade… Ela não é privilégio ou penitência de idoso. A saudade é companheira permanente do ser humano. Crianças conhecem e vivem a saudade. Thales de Andrade – de quem tive o privilégio de estar muito próximo – contava-nos a discussão inicial a respeito do título de seu livro famoso, “Saudade”. Diziam: “Um livro para crianças? Criança não sente saudade.”

Professor primário em escola de roça, Thales fez o teste com seus pequeninos alunos: “Joãozinho, você tem saudade?” E Joãozinho: “Tenho, das férias no sítio de minha tia.” Luizinho: “Tenho saudade do doce de coco que minha avó fazia.” E Thales perguntou a Pedrinho que, com o rosto enfiado entre os braços, respondeu num soluço: “Tenho saudade de minha mãe que morreu.”

A grande descoberta da velhice, pelo menos para mim, é a de que se pode “matar a saudade”. E é tão bom!

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