“In Extremis” (28) – A visita das crianças judias

Impressiona-me constatar como, a cada dia – mais e mais – acompanham-me a imagem, a lembrança de meus pais. E percebo  como a natureza, a criação têm uma engenharia inevitável. O que ocorre, por exemplo, com passarinhos, com plantas, ocorre, também, com o ser humano. Cada qual a seu modo. Fecundar, gestar, nascer, alimentar, ensinar, amadurecer, procriar, repetir tudo de novo e, por fim, ir-se embora.

Ainda agora, sinto a influência e – mais ainda – a presença de meus pais. E, em circunstâncias difíceis e sem o  perceber, pergunto-me, se estivessem em meu lugar, o que eles fariam. Conclusão inevitável, ainda que simplista: pais são uma impressão digital que acompanha os filhos por toda a vida. Para o bem e para o mal. Sinto-me abençoado por ter tudo a agradecer.

Tenho, por judeus e sua cultura, afeto e admiração gratuitos. Há uma sensação visceral de laços ancestrais. Meu pai – de origem árabe, maçom – ensinava-me: “Jesus e eu somos primos. Ele é judeu; eu sou árabe.” Já na infância, isso me ficou plantado na consciência.  E um ferro em brasa marcou-me a alma quando, nas mãos de meu pai, vi as fotos indescritíveis do holocausto nos campos de concentração. Ora, ninguém escapa à sua própria infância. E os judeus martirizados, a maldição da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagazaki têm-me acompanhado por toda a vida.

Pois bem. Há cerca de dois meses, surpreendi-me com a informação de que um colégio israelita de São Paulo viria visitar-me com um grupo de crianças judias e suas professoras. Ora, o que pretendiam, na casa de um escritor caipira, aquelas crianças? A resposta emocionou-me: conversar sobre Memória. Elas, as crianças de um povo que vive e sobrevive pelo respeito à Memória, estariam comigo? Mais do que honrado, senti-me intimidado. E, ao mesmo tempo,  espiritualmente enriquecido de alegria e de esperanças. Soube-me a bênção, algo místico, ancestral, de um simbolismo comovedor em relação a tempos realmente místicos que tenho vivido. Pois o racional não mais me satisfaz. E começo a entender que o preenchimento dos vazios humanos está no irracional, naquilo que se não entende.

E, como uma revoada de passarinhos, eis que chegou a criançada judia. Parecíamos, desde a chegada deles, velhos conhecidos. Ou uma família que se reencontrava: meninos e meninas judeus sentindo-se à vontade, alegres e fraternos no lar de um homem que, lutando para ser cristão, descende de árabes, sangue e alma do Oriente. “Jesus e eu éramos primos.” – ouvi novamente, com toda a doçura, a certeza teológica de meu pai.

Foi uma tarde de confraternização através da Memória. Memorável.  A cada objeto que viam ou pegavam, elas me perguntavam da origem, da história de cada um. E viram – em silêncio significativo – a menorá ao lado do Cristo em meu oratório. E a mezuzá, à entrada, próxima a um sorriso de Nossa Senhora. Confusão, sincretismo impossível? Não. Apenas a certeza de que, espiritualmente, o Ocidente é, também,  judaico-cristão. Ou, na história cristã, é possível ignorar que Jesus, Maria, José, os apóstolos eram judeus? Intimidado, não lhes falei de quanto bebo da sabedoria judaica. E de quanto essa cultura me assombra através de Maimônides, de Martin Buber, da leitura de alguns trechos do Talmude, nas histórias do Rabi, nos tesouros mensais da revista Morashá…

Quando se despediram, senti – como num delírio oriental – que elas  haviam deixado, no lar de um árabe-cristão, ouro, incenso e mirra. Meu pai tinha razão. Pois aquele encontro foi uma confraternização entre primos. E irmãos.

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