“In Extremis” (31) – O triste olhar do Menino Jesus

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(imagem: reprodução Pixabay)

Deve ter sido há cerca de 20 anos. Acontecimentos, situo-os a partir de minhas próprias lembranças. Parece-me ter sido há uns 20 anos por recordar-me de estar, eu, plantando uma palmeirinha no jardim.  A meu lado, o amigo querido insistia para me levar à Grécia. “Você tem que ir, precisa voltar a viajar.” Tentei explicar-lhe a razão de minha recusa,  opção definitiva: “Agora, meu caro,  faço apenas uma viagem: por dentro de mim.” E ele desconsolou-se: “Essa, nunca farei. É muito difícil.”

Difícil, sim. Muito. E extenuante, desafiadora. Mas de tal forma fascinante que, tendo-a iniciado, não mais há retorno. Viajar por dentro de si mesmo é ir ao encontro não do desconhecido, mas do que ficou enraizado. São pétalas e espinhos da mesma flor. São redescobertas dramáticas do inesperado, daquilo que matou a esperança e, também, do que, no desespero, surgiu como sopro de vida. Um caco de vidro aqui, um pedaço de telha ali, um prego enferrujado… E a doçura de uma colher de mel, uma réstia de luz de azulada noite de estrelas, um perfume de mulher, um beijo de mãe, um abraço fraterno, ombros de pai… É a grande aventura espiritual, caminhando entre nuvens, campos, florestas, enfrentando precipícios, becos sem saída. Enfim, um encontro com fantasmas, anjos e demônios. Apenas para aprender a conviver com eles, não mais evitá-los.  E, pelo menos, coexistir com eles, se não mais for possível a convivência.

Numa dessas longas viagens, descobri uma das razões de minhas tristezas de Natal.  Pois, no torvelinho que escolhemos para viver, há muitos porquês, sem que lhes demos respostas. Uma das lembranças, pois, de minhas tristezas natalinas está numa simples, prosaica, até mesmo banal perna de frango assado. Ela não é causa de nada, mas instrumento, personagem de uma amargura que nunca mais me abandonou.

Estava, eu, recém casado, Natal de 1963. Haviam-me indicado, dois anos antes – aos meus 21 anos –  para ser diretor de um novo jornal. Mais do que o entusiasmo de moço por aquele desafio, fui assaltado pelo peso da responsabilidade. A época era de intensos debates em praticamente todas as atividades humanas. Em todo o mundo. E posicionamentos ideológicos confrontavam-se em debates sem fim, defendendo outras visões de mundo.  E ninguém tinha certeza de nada.

Eu queria, sim, mudar o mundo. Não sabia como, mas queria. E tentei, sem dar-me conta de que minhas contradições deveriam, por mim, ser entendidas não como incertezas, mas como parte de um todo. E, portanto, necessárias. Mas eu era moço demais. E, então, naquele Natal, senti-me miseravelmente frágil. A alegria familiar parecia plena. Minha mãe, antes da meia-noite, convidara-nos a uma oração conjunta, a congratularmo-nos.  E seu alegre anúncio: “Pronto. O Menino Jesus já nasceu, vamos deixá-lo dormir. Agora, é comemorar!”

Comemorávamos. E, então, alguém bateu palmas à porta. Mais próximo dela, fui atender, uma perna de frango na mão, mastigando galhardamente. Abrindo-a, vi o menino, uma criança solta na madrugada. Fiquei imobilizado, perna de frango parada no ar.  O olhar do menino, o triste olhar daquela criança paralisou-me. Não era o olhar de um pedinte, nem olhar de revolta. Os olhos do menino refletiam perplexidade, incompreensão, como se ele mesmo estivesse surpreso: “Por quê?” Por que a perna de frango, por que a festa, por que a alegria, por que a fome, por que o desamparo? Por que a injustiça?

Em todo Natal, o olhar daquela criança volta a cobrar-me, como um fantasma que me não abandona. Ainda hoje, parece-me o triste olhar de um Menino Jesus, forçando-me, agora, a eu mesmo me perguntar: “Por quê?”

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