“In Extremis” (33) – “Gracias a la vida”

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(imagem: Rosie Kerr / Unsplash)

Até os ódios eram mais verdadeiros. Odiava-se por mil razões e não, como agora, gratuitamente. Odiavam-se a ditadura e o ditador; odiavam-se as injustiças oficializadas e os privilégios escancarados. Mil motivos existiam para odiar como se fosse, o ódio, uma aliança com o amor. Pois, na mesma intensidade, eram, os amores, intensos e desesperadores. Amava-se como se fosse a última vez. Como se não existisse o amanhã. Parecia-nos ser a última verdade em que acreditar. A derradeira esperança, alimentada por uma promessa então quase esquecida: a de que, ao final, o amor venceria.

Não tínhamos consciência do que acontecia, uma época quando os deuses resolveram gerar maravilhas. E os demônios, horrores. A história, porém, identificou-os por seus significados: “anos dourados” e “anos de chumbo”. Não há como defini-los, da mesma forma como, a um cego de nascença, não se explicam as cores do arco-íris. Quem os viveu não tem como contar; quem conta, sem tê-los vivido, diz tolices ou tem má fé.

Éramos jovens e, sim, “amávamos os Beatles e os Rolling Stones”. Foi como se anjos alegres e travessos – talvez, cansados da   monotonia dos céus – tivessem resolvido fazer folgança na Terra. E fizeram! Pois, se, até então, o mundo mostrava-se frio e nevoento, tudo pareceu ter-se iluminado. Era uma nova primavera, vivificante, com frescor e alegria. Martin Luther King, delirando de paixão pela liberdade, exclamara: “Eu tenho um sonho!”  Mas, como todas as primaveras, aquela também passou. John Lennon – que tanto nos fizera cantar – foi um dos primeiros a perceber e lamentou: “O sonho acabou”.

Foi a vez das baionetas, dos fuzis, dos coturnos e tanques de guerra. O brado da juventude mundial – “Faça o amor, não faça a guerra!” – foi sufocado pela violência e ódios, pelo medo do belo e do bom. (Há sintomas, ainda agora, no ar…)  Quando, porém, o desânimo e a esperança ameaçaram enfraquecer aquela geração, uma voz soltou-se da altura dos Andes e uma canção espalhou-se pelo continente latino-americano. E a alma do mundo respirou. A voz, da chilena Violeta Parra; a canção, “Gracias a la vida”. Os corações novamente aqueceram-se. Foi em 1966.

Na Argentina, Mercedes Sosa, com seu grave e tocante cantar, repetiu a oração. E, no Brasil, a incomparável Elis Regina – como que em nome de todos nós – rendeu graças à vida. E o fez como ninguém: “Gracias a la vida, que me ha dado tanto…” Foi, talvez, o nosso consolo. Ou um novo e mais lúcido despertar. Para todos nós, cultivadores de sonhos. Também para mim. Em mim.

“Graças à vida, que me tem dado tanto…” Tanto e tanto que mal percebemos. É como se, com medo da luz, tivéssemos buscado refúgio na palidez da noite. E, na penumbra de um viver amedrontado, aceitássemos conviver com fantasmagorias. A caverna de Platão tornou-se-nos cárcere verdadeiro.

Violeta Parra rendeu graças à vida pelos “olhos e ouvidos” que nos foram dados. E que nos permitem enxergar e ouvir a beleza do real sem precisar inventá-la. Graças à vida pelos olhos de ver, ouvidos de ouvir, coração de amar, pés de andar, mãos de acariciar. Ouvir tiros e cantos de canários; tocar pétalas das flores e espinhos; amar o bom e o belo, ou ignorá-los; andar sobre pedras ásperas e, depois, pisar em areias macias. Viver não é um destino. Viver é escolha.

Da fundura de minhas lembranças, a música retornou-me aos ouvidos, ao coração, como que trazidas para me despedir de 2019 que se findava. E celebrar o então aguardado 2020. “Gracias a la vida”, sem nada mais a pedir. Apenas isso. E tudo isso. Eu o fiz.

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