In Extremis (39) – “Noblesse oblige”

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(imagem de Prawny, por Pixabay)

Ah, “como era gostoso o meu francês”! Não me refiro ao filme com esse título, dirigido pelo Nelson Pereira dos Santos. Filme de que, aliás, não gostei. Gostoso, valioso foi o francês que aprendemos na infância e adolescência, parte de uma educação mais refinada. Foi assim, pelo menos, nas escolas que frequentei.

Era um Brasil – logo após a II Guerra – ainda influenciado pela cultura francesa. As primeiras palavras que aprendemos foram “Ma Mère”, minha mãe, com que nos dirigíamos à Madre Diretora. Os jornais divulgavam os filmes das “matinées”, das “soirées” e “soirées chiques”. As sessões “chiques” sugeriam roupas mais apuradas como aquelas, por exemplo, de se “ir à missa das 10h”.

Tínhamos aulas denominadas de “civilidade”, que nada mais eram do que aulas de boas maneiras, de etiqueta social.  Minha geração se rebelou diante disso, ficaram-nos gravadas no comportamento. Não falar enquanto se mastiga, não colocar os cotovelos na mesa das refeições, levantar-se quando mulher ou pessoa idosa aproximar-se, subir escadas antes da companhia feminina… Por mais dinossáurico isso pareça, a verdade é que era assim. E foi bom. E de grande valia na vida comunitária de então.

Até o inglês que aprendemos era mais cultivado, o inglês britânico, o de Shakespeare. Ao fim, porém, tudo estava sendo transformado pela monumental influência estadunidense, a dos vitoriosos na guerra. (Insisto no estadunidense, pois se nos referirmos a “americano”, eis que todos o somos, das três Américas. E lembremos que norte-americano são, também, mexicanos e canadenses.)  Logo, então, nos esquecemos de Maurice Chevalier, de Edith Piaff, para nos apaixonarmos por Elvis Presley, por caubóis, pelo jazz.

A cultura francesa deitou raízes em minha geração. Pelo menos, em mim. E aquelas lições de civilidade, de boas maneiras permaneceram vivas. Mas foi difícil – e, agora, pior ainda – mantê-las. Lembro-me de ter percebido o início do desmonte daquela arquitetura cultural há cerca de uns 40, quase 50 anos. Estava no metrô – e, ainda, teimo em contar isso – e, numa das estações, uma jovem mulher grávida entrou no vagão superlotado. De imediato, levantei-me, oferecendo-lhe meu lugar. A jovem mulher me olhou com desprezo: “E você pensa que gravidez é doença?”

Ainda àquela época, vivi a alegria de frequentar o restaurante “Brahma”, nos seus áureos tempos, românticos, aqueles dos velhinhos tocando piano, violino e acordeón. O Brahma de escritores, jornalistas, artistas, intelectuais.  Numa daquelas noites, a consagrada escritora, a meu lado, tomou do cigarro.  E eu, todo cavalheiro, acendi o meu isqueiro. E ela, meneando a cabeça: “Você é, ainda, desse tempo?” Ora, é preciso haver um tempo determinado para a gentileza, o respeito?

Aquela cultura semeou, neste país, a consciência da “noblesse oblige”, a nobreza obriga. E, por nobreza, que se não entenda apenas pertencer à chamada classe monárquica, imperial, de “sangue azul”. Trata-se da nobreza – respeito, fidalguia, exemplo, referência – exigida por cargos, funções, profissões, atividades. E, especialmente, nas relações sociais. É a nobreza de caráter, a consciência firme daquilo que passa a simbolizar. Ou seja:  o pleno senso de civilidade, uma ética do dever.

A presidência da República é o cargo no qual a “noblesse oblige” ainda mais. Quando um presidente se recusa a tê-la, é por ser-lhe desconhecida a “noblesse” pessoal. E isso o despe de toda e qualquer autoridade. Surge, apenas, um homem vulgar.

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