“In Extremis” (46) – Coexistir, conviver, coabitar

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(foto: Manideep Karne / Pexels)

De Jacques Prévert:

Você diz que ama as flores e as corta.
Você diz que ama os peixes e os come.
Você diz que ama os pássaros e os prende em gaiola.
Quando você fala “Eu te amo”, eu sinto medo…

Nesta hora amarga, recorro ao poeta que nos alcança em nossa ambiguidade. Pois são os artistas os que mais absorvem as horas amargas e as ambiguidades. Na realidade, são eles que sentem, que vivem e, até mesmo, chegam a compreender os paradoxos da vida: amar é sofrer, um dos exemplos. Fosse eu musicista, certamente recorreria a Chopin. Fosse pintor, confortar-me-ia no “chiaroscuro” de Caravaggio. Sou, porém, apenas um escrevinhador e, na hora amarga, recorro a Prévert.

Pois, embora amargos, são tempos verdadeiros. Dolorosamente verdadeiros. Máscaras caem, disfarces tornam-se inúteis, até mesmo desnecessários. Estamos desnudos, fragilizados, oportunidade real para deixarmos de, tão somente, cumprir papéis, em vez de, realmente, vivê-los. Mas, sem máscaras, como fazê-lo?

Contra nossa vontade, ficamos confinados, como que reclusos.  E eis que a contradição atinge a muitos e muitos: o sonho das pessoas sempre foi o de ter a casa própria, de estar nela, vivendo seu mundo familiar. E, no entanto, na atualidade, o que muita gente quer é fugir de suas próprias moradas. O lugar de ficar, de ser o aconchego, a paz, refúgio e conforto, tornou-se quase que sinônimo de prisão. Não apenas agora, na grande crise mundial. Mas já há algumas décadas. Ideologias materializantes conquistaram mentes coletivas. E sequestraram o espírito. E o ser humano caiu no vazio profundo. Tão profundo que lhe trouxe o medo de amar.

Admito não ser, atualmente, a pessoa indicada para – nesse recolhimento forçado – falar de relações sociais do cotidiano. Pois, há mais de 30 anos – quando meus filhos já se iam para o mundo – escolhi a vida mais reclusa. Mas participei – e intensamente! – das relações familiares, da inenarrável aventura de coexistir, de conviver e de coabitar com os mais queridos. Aventura inexplicável! A vontade de ficar, a vontade de ir embora. Momentos de intensa alegria, outros de pressão insuportável. Conviver, coabitar, eis o prêmio e o castigo. Foi, no entanto, uma outra época, numa outra realidade.

Como, o quê fazer? Que ninguém mo pergunte, pois não saberei responder. E temo por quem diga sabê-lo.  Pois, estamos vivendo o drama de cada pessoa, de cada família, com sua história peculiar, única. O rei, em seu palácio; o pobre, em seu casebre; o miserável, na rua. E quase tudo o que nos foi ensinado, quase tudo o que nos apresentaram como verdadeiro não mais nos serve. E, mais do que proféticas, parecem atualíssimas as palavras de Marx, no  longínquo 1848:

Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado. E as pessoas são finalmente forçadas a encarar, com serenidade, sua posição social e suas relações recíprocas.

Talvez, seja necessário, ainda outra vez, fazer uso de máscaras, de novas, mas conhecidas máscaras. Talvez, as que possibilitaram, ao longo dos séculos, as civilizações sobreviverem, as máscaras da hipocrisia. Pois, para os gregos, hipócrita (“hypocrates”) era o ator teatral, aquele que sabia desempenhar papéis. Um fingidor. A única possibilidade que temos, para coexistir, é – se não amarmos realmente o outro – fingir que o suportamos. Foi fazendo de conta que sobrevivemos até aqui….

Logo, para conviver, coabitar – se não houver amor – creio que seja vital aprender a coexistir. Pois, “quando você fala Eu Te Amo, tenho medo de você…”

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